No início de mais um ano, quero refletir a partir de dois símbolos que escolhi para presentear uma turma que me escolheu para paraninfo da conclusão do Ensino Médio na escola Sagrado Coração de Maria, Copacabana, onde sou professor de Português e Literatura na EJA.

Minha reflexão, é óbvio, parte daquilo que sei fazer, que é dar aulas. Pensei em conduzir os presentes numa aula de literatura. Então lembrei de dois textos. O primeiro foi escrito por Machado de Assis e se chama “Um apólogo”. A expressão “fazer apologia” é geralmente utilizada de forma negativa. Fazer apologia significa engrandecer, valorizar uma atitude, seja ela boa ou ruim; e apólogo consiste num tipo de texto cujos personagens são objetos e têm características humanas: falam, pensam, brigam, choram, aprendem… No final, o apólogo apresenta uma moral, uma lição.

No conto do Machado, uma agulha, orgulhosa de sua função (porém nada humilde), começa a criticar um carretel de linha, dizendo que a linha está cheia de si, toda enrolada, achando que é alguma coisa. Começam a brigar, a discutir, a medir forças. A agulha se acha mais importante do que a linha, que chama a companheira de orgulhosa. A linha diz que cose os vestidos, e a agulha argumenta, dizendo que a outra só faz isso porque o caminho foi aberto por ela antes. Eis que a costureira interrompe a briga quando pega as duas e se põe a trabalhar. No final da história, a agulha arrogante volta para a caixinha de costura e é a linha quem vai para o baile no vestido da baronesa.

Superação, garra, luta: aprendamos com esses exemplos

 Esse apólogo parece muito com aquela turma de formandas, todas mulheres, todas sofridas, todas esperançosas, todas cheias de desejos. A palavra que elas escolheram para tema de sua formatura foi “superação”. E têm razão, pois superaram muitas coisas. Deixaram de agir como a agulha e a linha quando perceberam que somente juntas podiam ser capazes de ir ao baile. Perceberam que não adianta pensar como a agulha, que fura o pano e vai na frente; nem como a linha, que une os pedaços do tecido. É preciso trabalhar em conjunto para que o vestido fique pronto e lindo. Para que percebessem que a união é que faz a força, foi preciso ouvir broncas de muita gente que naquela noite as aplaudiam, em especial, os professores. Depois de terem superado essas desavenças e permitido que nós conhecêssemos sua vida, o sofrimento, as dificuldades, os problemas por que passaram, foi mais fácil aceitar nossas palavras.

E pedi àquelas mulheres que, onde estivessem, dignificassem o ensino que nós lhes pudemos oferecer. Pedi que levassem também nossas angústias, nossas esperanças, nossas alegrias e nossas tristezas e fossem arautos disso. Pedi que dissessem à sociedade que nós, os professores, precisamos ser mais valorizados, precisamos ser tratados como profissionais, porque ser professor é uma profissão, não é sacerdócio, não é vocação, não é uma doação gratuita. É uma profissão! Se muitas vezes somos pais e mães para nossos alunos, se às vezes agimos como psicólogos ou médicos, ou sacerdotes, é porque temos certeza da lacuna que há na sociedade. Aí, nós tentamos preencher. Lembrei que, como profissionais, também erramos, nos alteramos, nos impregnamos de incertezas. Porque não podemos separar o humano que há em nós e que nos cumula de fragilidades. Como nossos alunos, também tentamos o tempo todo nos superar.

Aquela turma que se formou em dezembro foi a última da Educação de Jovens e Adultos formada apenas por mulheres naquela escola. A partir de 2012, depois de 35 anos do curso, passamos a receber homens neste segmento. Um avanço, sem dúvida, na inclusão, que é o que como a EJA deve ser.

Uma justa homenagem

As formandas escolheram o nome MALALA YOUSAFZAI como símbolo de sua força. Malala, aquela menina paquistanesa que enfrentou o regime talibã que havia fechado escolas no país e impedido que mulheres pudessem voltar à escola. Malala continuou estudando escondida, enquanto publicava num blog protestos contra seu regime, que alcançou notoriedade depois que a BBC de Londres passou a divulgar seus textos. Em outubro, a menina foi baleada num atentado, junto com outras duas crianças. E hoje está na Inglaterra para recuperação.

Assim como essa menina, que só quer estudar, a muitas de nossas alunas foi negado esse direito no tempo propício. Mas elas não desistiram. Superaram as dificuldades e hoje estão prontas para o baile da baronesa do conto de Machado de Assis. Como símbolo disso, desse momento, dei-lhes dois presentes: um carretel de linha com uma agulha presa e um sapatinho de cristal. Do carretel e da agulha já falei (uma referência ao texto do Machado); o sapatinho de cristal lembra outro texto: a gata borralheira, ou melhor, a Cinderela, que, por encanto, ganha roupa e sapatos para ir ao baile no palácio sendo vista pelo príncipe, que se apaixona e casa-se com ela, tirando-lhe do sofrimento imposto pela madrasta.

Mas lembrei que essa história de príncipe encantado já era, uma vez que a mulher atual não precisa do homem para ser. E aquele sapatinho de cristal simbolizava isso, a autonomia que a mulher deve ter para vencer, sem a ilusão de que a felicidade só virá quando encontrarem sua cara-metade. Ilusão porque cada ser é pleno, não é uma banda, uma metade, e, portanto, a felicidade não virá somente por causa do outro, da união com o outro. O estudo certamente mostra que homens e mulheres devem ser autônomos. O resto é conto de fadas.

Um abraço novamente às minhas alunas (agora ex-alunas) e um excelente 2013 aos leitores da Biblioo.

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