Por Thomas A. Hackel do Literatortura

Há algum tempo, dei-me conta de que alguns amigos vinham reclamando de que ler estava cada vez mais difícil. Ao mesmo tempo em que as feiras literárias se proliferam cada vez mais, a leitura, pelo menos para esse grupo seleto de amigos – e, cá entre nós, acredito que com muito mais pessoas -, tornava-se cada vez mais difícil. Seja por prazer, seja por obrigação acadêmica.

A partir dessa afirmativa, pude perceber (e comprovar) que o mesmo acontecia comigo. Ler se torna cada vez mais difícil, e não pela leitura em si, pela dificuldade de se encontrar textos – apesar de estar cada vez mais lidando com livros difíceis -, mas pelo simples parar e ler.

Eis porque decidi escrever esse texto.

O livro é a ficção

Para início de debates, há de se pensar o que é o livro propriamente dito. Em tempos de ebooks e livros materiais disputando o espaço, é preciso parar para pensar na entidade “livro” – e ela não deve ser entendida em sentido material, mas como uma entidade de representação da ideia de livro. Assim sendo, é indiferente em papel ou ebook, para esse momento, visto que os números das feiras têm aumentado, o que pede uma visão além do visível. O problema não é tecnológico.

O livro é uma experiência. O ato de narrar é a experiência em si, o contato de leitor com outro, livro. Está ligado, dessa forma, à própria experiência humana ao ser um diálogo. A narrativa, portanto, nada mais do que se alimenta da própria vivência humana, como é alimento da vivência, de forma que existe um contato entre eles – e não é de forma vertical, mas sim horizontal. A narrativa e a vivência se filiam pela relação produtor-receptor (seja qual for que esteja empregando qual termo).

A importância de se pensar dessa maneira é porque a relação estabelecida entre os dois permite uma “filiação” das experiências. Ela vem funcionar como uma forma de manter contato daquela experiência dita desconhecida com o leitor, deixando-o sentir a partir dela. Ao mesmo tempo, existe a imprensa, existe uma história fixa, a própria entidade livro, seja material ou tecnológico, que é o emancipador da narrativa. Ela não precisa estar em contato direto com o leitor, de forma que é possível, mesmo assim, que a narrativa atue como um propulsor de experiências.

Há de se pensar então: o que interferiria na nossa capacidade de contar histórias, de forma que poderíamos falar numa “crise” da leitura? Se a leitura é um processo de experiência entre o leitor e o livro, significa que o leitor precisa estar disposto a contar, e sentir, o próprio processo de experienciação do mundo. Contudo, no meio disso há uma pedra: nossa história. Nossa vida. Nossos traumas. Como falar em narrar o mundo quando o mundo se torna cada vez mais inenarrável, entre guerras, massacres…?

O livro, portanto, entra em própria contradição. É preciso lutar para narrar o mundo, para se produzir experiência, ao mesmo tempo em que as narrativas precisam lutar para não se tornarem apenas histórias, como adição ao mundo, em vez de memória do pensar.

No entanto, não é culpa dele. É culpa nossa. Ele desempenha o papel de verificação e emergência do sentido da vida, mas como a natureza é mutável no ser humano e na maneira como vive a vida, a relação e a percepção com o mundo, a partir do livro, se modificam.

Eis porque precisamos de outro tópico para explicar o mundo.

A realidade entre a radicalidade e a “pós”-modernidade

É muito comum, atualmente, explicar tudo a partir de uma perspectiva pós-moderna. Mas pensar dessa maneira exige assumir uma postura segundo a qual toda a cultura literária, sua ligação com o mercado, e como os processos de modernização do mundo passaram a interferir a partir de agora na nossa capacidade de pensar faz tempo.

Pensaremos, aqui, sem nomes. Pensaremos apenas em como, atualmente, o mundo torna-se cada vez mais difícil de ler e qual é a influência do mercado, na nossa forma de pensar, e até mesmo da tecnologia nesse contexto.

Vamos partir da importância do ato do “consumo” para nossa atual sociedade. A sua importância é a seguinte: a partir do momento que compramos, estamos validando uma experiência; disso, tiramos uma dinâmica de “ser” e “estar” com as compras, um padrão que se estabelece. Logo, se a compra é nossa forma de validar uma experiência, o que precisamos fazer para que se… valide? Comprar!

Chamemos isso de “revolução consumista”. Foi quando o consumo se tornou essencial e o nosso propósito, e isso é adquirido a partir da importância que o capitalismo deu ao ato de comprar, como forma de movimentar o mundo e, agora, regê-lo. Assim, quando se tinha, no passado, uma perspectiva de que o mundo era feito por “força de trabalho”, e você era o seu próprio trabalho, hoje você é aquilo que consome. Desde suas roupas até suas comidas. Ou nunca se deu conta de que precisamos comer cada vez melhor, nos vestir melhor, comprar mais, sentir mais…?

Hoje não se “quer” algo mais. Precisa. Precisamos do novo iPhone, precisamos do novo livro da Cosac Naify (para ninguém pensar que estamos fugindo dessa perspectiva…), precisamos da nova peça de roupa. A vontade de querer não é mais individual; é, por outro lado, colocada a partir da própria perspectiva de uma nova sociedade, de forma que o querer foi substituído por precisar: chame isso de força externa ao indivíduo, e isso vai movimentar e manter em curso a forma de convívio humano.

Pode parecer complexo ao se ler, mas não é. A lógica é basicamente essa: a necessidade de comprar rege o mundo e, se ela rege o mundo, ela não é mais do campo individual, mas sim a estrutura da sociedade. Viu como o consumo substituiu o trabalho? Como as coisas ficaram mais… efêmeras?

Agora pensemos calmamente: se a sociedade precisa de consumo, onde ela deve se mexer? Nos processos de satisfação de seus indivíduos. O que te faz comprar, qual é a sensação? Prazer. Mas, se esse prazer se perpetuar, nos tornaríamos felizes com nossas compras, e a partir desse momento, não precisaríamos comprar mais. Ficou a questão: PRECISAMOS comprar, portanto, há necessidade de que comprar seja um ato gerador de satisfação; porém, NÃO PODEMOS permanecer satisfeitos, de forma que não comprássemos mais. Aqui está a aplicação do mercado na nossa forma de viver. Comprar não satisfaz, apenas entretém. Assim, torna-se um volume e intensidade de desejos crescentes. Quer-se cada vez mais, precisa-se cada vez mais, de forma que as imagens são validadas quase imediatamente após a compra e substituídas por outra imagem de desejo. Ora, falo por conta própria – e desafio vocês a não dizerem que acontece o mesmo: já comprei coisas de que logo depois me arrependi, enquanto percebia desejar outras. Isso não é coincidência.

Pode parecer que estou simplesmente falando mal do capitalismo (e estou!) e fazendo proselitismo, sem ter nenhuma e qualquer relação com o tema que escolhi. Mas tem, porque tudo isso produz uma cultura do agora. Esse “agorismo” é uma nova forma de pensar, e ela justamente vai repensar a nossa ideia de tempo.

Virginia Woolf tem uma fala que diz basicamente que “há um descompasso entre o tempo do relógio e o tempo da mente”. Isso significa que, já naquela época, havia uma noção de que o tempo não condiz com as noções físicas que estudamos. O tempo é filosófico e cultural, e é só por ele ser dessa forma que vivemos e temos noções diferentes de realidade, do seu passar. E o produzido pelo consumo é mercado por rupturas e descontinuidades, intervalos que separam pontos e rompem vínculos. Não há nada que dê coesão a esses pontos e rupturas, de forma que qualquer lógica está fora do que se tem e é criada apenas pelas inserções dentro de cada um desses tempos. São como fragmentos em si mesmos.

Isso é complexo? Sim, bastante. Mas vamos descomplicar aos poucos. Pense, primeiro, na ideia de uma reta, de uma rua, um caminho. Esse é o tempo como noção básica anterior ao que explicamos. Esse tempo segue, linearmente, para um caminho, para uma ideia de futuro; essa ideia, caso caía um galho no caminho, faz com que retiremo-nos. É um tempo construído de forma única, conservadora e coerente. É por esse tempo que pessoas permaneciam no mesmo emprego durante toda a vida (e lembrem-se da Virginia Woolf, cada tempo é um tempo; cada pessoa vive num tempo). O do consumo, por outro lado, é o das bolhas. São várias bolhas de sabão em que se vive. Primeiro numa, e a partir do momento que extingue todas as necessidades criadas dentro dela, estoura-se; corre para outra, e, ao correr, esquece tudo aquilo que havia no outro. Este é o tempo das muitas faculdades, dos muitos empregos, do pular e pular em ideias descompassadas. É o tempo da incoerência e o tempo do presente. Pensa-se no hoje. Não há ideia alguma de progresso.

É importante uma pequena pausa apenas para nos lembrar: não há essa ideia de hierarquização aqui e, longe de mim, defendê-la como a ideia de um tempo melhor que outro. Cada um tem suas devidas peculiaridades, e permite determinadas coisas em detrimento de outras.

Partindo disso, como há de se pensar em ler? Onde entraria o ato de narrar uma experiência se somos cada vez mais validados pelo presente, numa constante insatisfação de prazeres efêmeros e de contextos marcados por rupturas, pontos e fragmentação?

A ficção é um processo artístico de linguagem que necessita da experiência como formulador de si mesmo. Em vez disso, as bolhas precisam de informação: elas já vêm decifradas e são substituídas antes mesmo de ser absorvidas, não sendo capazes de assimilar-se numa cadeia de acontecimentos. A informação é rápida, justamente como o prazer.

O livro, por outro lado, precisa manter o diálogo. Liga o privado ao público, o individual ao social. Precisa permanecer valoroso e não como instrumento de consumo. Como sintetizar, então, num mundo marcado por todas essas questões e que renunciou ao pensamento consistente?

Eis que ainda tem mais, em outro tópico.

A luminosidade do mundo diante o ato de ler

Se já não bastasse o papel do mercado na nossa forma de percepção temporal, há de se pensar em como a tecnologia pode afetar primordialmente nossa capacidade de leitura. E, para isso, vou dividir em dois pontos: como as categorias de espaço e tempo são afetadas pela tecnologia e como os recursos de modernização cada vez mais intensos afetam nossa capacidade cognitiva.

Imagine que para conversar com alguém, mais do que nunca, só é preciso o celular ou o telefone. Isso, por si só, já seria uma nova forma de percepção do mundo, porque, logicamente, é uma construção de contato sem corpo. Há de se pensar que na tradição sempre foi necessário basicamente sentir o outro, como uma combinação de sentidos, de calor, de afeto, para pensar com o outro. Hoje, por outro lado, as redes sociais permitiram maior acessibilidade ao meio comunicativo, além de uma forma mais plural de diálogo. Conversa-se sem contato. Sente sem sentir, basicamente… ou as relações afetivas não são estabelecidas por meio de uma instância virtual?

Essa maneira de lidar com o tempo e o espaço. Oras, se estamos nos comunicando, estamos pelo menos no mesmo espaço linguístico e no mesmo tempo linguístico, mas se estamos separados, estamos cultural e geograficamente demarcados por fronteiras. Essas fronteiras são quebradas, ao mesmo tempo em que mantidas, por uma imbricação, coexistência e sobreposição de imagens de tempo e espaço ao mesmo tempo. Isso, por si só, já nos dá outra forma de realidade advinda de novas maneiras de apreensão do espaço-tempo, uma forma bem mais efêmera, fragmentada, lânguida…

Somado a isso, falemos da importância da modernização nessa nova forma de percepção. Desde muito tempo já se tem o cinema, a fotografia… E foi-se evoluindo para a TV, para os outdoors, e, aos poucos, tomando-se o espaço público e privado. A internet veio, e, com ela, uma proliferação de conhecimentos e de formas de pensar. Isso tudo, claro, pode ser muito bom; mas, temos que pensar que um indivíduo recebe mais informação a cada segundo que passa. Tudo acontece ao mesmo tempo com tempos diferentes. O uso do computador, o uso da TV, andar na rua entre muitos barulhos, imagens, chamados, fluxos de atenção.

A exemplo do facebook, vamos ilustrar isso melhor. Enquanto conversamos numa mensagem, outras estão sendo escritas. Enquanto isso, seu feed de notícias está automaticamente se renovando, e suas notificações vão chegando, cada uma sobre um assunto específico. Há grupos, eventos e fotos. Todas as validações exigindo de você ao mesmo tempo. Isso não te soa cansativo? Pois me soa. E isso é o exemplo atual de como vivemos, exigindo cada vez mais de nós, cada vez mais contato. Hoje o whatsapp e o aplicativo do facebook não esperam mais, exigem. Chamam, apitam. O barulho é constante, o assunto é plural e a atenção se fragmenta.

Tudo isso atrapalha a leitura, porque a nossa nova forma de percepção da realidade é outra. É cada vez mais fluída e fragmentada, perdida em pequenas esferas, como as tais bolhas das quais falamos antes. O indivíduo é hiperestimulado, porque os sentidos estão sempre em seus limites, e sendo ainda mais provados, mais exigidos, mais estimulados. É um constante estado de irritação cognitiva, de desprendimento de atenção. Os textos diminuem, nosso foco também. Precisamos de atenções cada vez menores, porque em vez de lermos na vertical, estamos lendo na horizontal. E tudo isso influencia a nossa forma de pensar, de agir e, obviamente, de leitura.

Eis que estamos cada vez menos leitores.

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Ps1: Esse texto tem como referências textos diversos do Zygmunt Bauman.

Ps2: O tamanho é metairônico – se estamos falando sobre não se poder ler mais devido ao excesso de estímulos e da condição do tempo, nada mais justo que a explicação não seja efêmera.

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