Por José Paulo Cavalcanti Filho em O Globo

A descoberta de um inédito. Quem escreve sobre algum autor, durante longo tempo, sempre sonha encontrar um inédito dele. Pelo só prazer de ter feito a descoberta. Ou por imaginar que o destino conspirou para que assim tenha sido. Este caso de agora é curioso. Trata-se de um caderno de autógrafos que vai trocando de mãos. Sem que nenhum dos seus anteriores proprietários se tenha dado conta de que o texto de Pessoa, ali escrito, era mesmo um inédito. Talvez porque, em 2005, algo que seria um como que rascunho dele tenha sido publicado em Poemas de Fernando Pessoa, 1915-1920, numa edição de João Dionísio para a Imprensa Nacional – Casa da Moeda, em Portugal. Pensava-se, era mesmo natural, que seria o tal poema sem título que começa pelo verso Cada palavra dita é a voz de um morto. Mas desse rascunho, publicado antes, Pessoa manterá só os dois primeiros versos.

E outros dois, em seguida. Os demais foram reescritos – em alguns casos, alterando radicalmente o próprio sentido original do texto. Ou foram excluídos. Com numerosos acréscimos. Tudo a resultar em algo novo. Para compreender como isso aconteceu, é preciso O caderno de couro vermelho. Em 29 de janeiro de 1913, o jovem José Osório de Castro e Oliveira está No alto mar, a bordo do König Wilhelm II – assim, com letra desenhada de quem acabara de fazer 13 anos, escreve na primeira página daquele caderno.

Presente de sua mãe, Ana de Castro Osório (pioneira na luta pela igualdade dos sexos, em Portugal), por ocasião do aniversário de seu filho Jeca (apelido pela qual o chama), ocorrido há dois dias. Como recordação de sua viagem de regresso à formosa Terra da Pátria, escreve ela. O pai, Paulino e Oliveira, poeta e ativo membro do Partido Republicano, depois de frustrada rebelião em que participou, está residindo no Brasil (onde morreria pouco depois, de tuberculose, em 13 de março de 1914). Apenas mãe e filho viajam, de volta a Portugal.

No alto dessa primeira página está um selo do Deutsches Reich (com carimbo da Linie Hamburg Südamerika, de 30 de janeiro de 1913). E pouco abaixo, escrito à mão, Livro de Autógrafos. No canto inferior esquerdo há hoje, colado, um ex-libris com desenho de castelo cristão medieval com quatro torres e a inscrição, numa bandeira, Força na Paz.

Colada posteriormente, tem-se a impressão. Dado refletir sentimento comum no país a partir da Primeira Guerra, sobretudo. Marca pessoal do José Osório, talvez (a conferir). Seja como for, era mesmo algo então natural, dado ser o ex-librismo usado com frequência no século XIX/princípios do século XX.

Em consulta ao Serviço do Correio Imperial Alemão, se vê que essa companhia transatlântica usava dois grandes navios na rota América do Sul (Buenos Aires, Montevidéu, Rio de Janeiro) – Europa (Lisboa, Hamburgo). O König Friedrich August e o dito König Wilhelm II. A imprensa de Lisboa anunciou em 1º de fevereiro de 1913, um sábado, que este último estava no porto. Vinha do Rio. E seguiria, depois, na direção da Alemanha. Ali, nas gares marítimas de Alcântara, desceram José Osório e sua mãe.

Curioso é que a bordo desse mesmo König Wilhelm II Fernando Pessoa, em férias sabáticas do padrasto, veio pela primeira vez de Durban para Lisboa. Malhas que o Império tece!, disse n’O menino de sua mãe. O jornal O Século de 14 de setembro de 1901 (pág. 4) faz constar: No navio alemão König, vieram de Durban o cônsul [João Miguel dos Santos] Rosa e 3 filhos – que seriam Pessoa (com 13 anos), a irmã Teca (com 5) e o irmão Luiz (com 2). Faltaram, nessa relação, a mãe de Pessoa, dona Maria Magdalena Pinheiro Nogueira; a ama Paciência; e também, para serem enterrados em Portugal, os ossos (ou talvez fossem as cinzas) de uma irmã morta de Pessoa, Magdalena Henriqueta.

Anotações. O jovem José Osório começa, então, a colecionar depoimentos de viajantes daquele navio. Quase todos desconhecidos. Uma argentina, R. (mais sobrenome ilegível), o chama de simpático portuguesito (29 de janeiro de 1913). Outra, Maria Lia Lobo, de simpático compañero (31 de janeiro de 1913). Um argentino, J. Auber, escreve conselhos si tu veux devenir um bonito rapaz (31 de janeiro de 1913). Há mais, no caderno, instigante coincidência. Uma anotação, de 1º de fevereiro de 1913, dirigida Ao meu sobrinho adoptivo José Osório. Assinada por Manuela Nogueira. Uma homônima da sobrinha verdadeira de Pessoa, autora bem conhecida em Portugal. Inquirida sobre esse fato, declarou dona Manuela Nogueira jamais ter ouvido falar de alguém que tivesse o seu mesmo nome. Fica o mistério. Como ensina uma das Regras da Vida de Pessoa, Felizes aqueles para quem o mistério se resume em Padre, Filho e Espírito Santo. Deles é a felicidade.

O menino cresce. Nascido em Setúbal (27 de janeiro de 1900), ainda cedo José Osório se destaca como jornalista, crítico literário e ficcionista. Mais tarde se tornaria escritor de renome, com prefácios usualmente assinados por seu irmão João de Castro Osório. Primeiro ensaio foi Oliveira Martins e Eça de Queiroz (1922). Depois, mais dez livros. Inclusive, editado no próprio ano de sua morte (Lisboa, 3 de dezembro de 1964), História breve da literatura brasileira. Em 1917, já com 17 anos, dá início a publicações literárias nas páginas do jornal A capital. A partir dos anos 1930, torna-se um divulgador da literatura cabo-verdiana e defensor da aproximação entre Portugal e Brasil. Casado com a escritora Raquel Bastos, em 1930, sua filha Isabel (Maria Bastos Osório) de Castro (e Oliveira) foi atriz de sucesso, com vários prêmios no teatro e na televisão, tendo participado em cerca de 50 filmes.

Novas anotações. A partir de 1915, José Osório decide aproximar-se das letras. E usa seu caderno para colher mais depoimentos. Como, sem data, o de Carmem de Burgos (e Segui, Almería, 1867 – Madrid, 1932), que discorre sobre o interesse pela arte. Carmem – jornalista, escritora e ativista dos direitos da mulher espanhola – era, certamente, próxima da mãe de José Osório, Ana Castro. (Artur Ernesto de Santa) Cruz Magalhães (Lisboa, 1864-1928) deixa (também sem data) enigmática frase – Ser bom é saber sofrer.

Talvez uma reflexão sobre sua própria vida. Cruz Magalhães, com numerosos livros publicados, é responsável (sem colaboração do governo) pelo magnífico Museu Bordalo Pinheiro, instalado num anexo de sua residência – na Rua Oriental do Campo 28 de Maio (atual Campo Grande), em Lisboa. E veio a morrer, pouco depois, sem jamais ter tido o reconhecimento que imaginava merecer. Contando-se ainda, nessa relação, três nomes importantes do “Primeiro Modernismo” – que nasceu com a geração da revista Orpheu. A Luiz de Montalvor. Em 1917, Montalvor escreve, no caderno, sobre tempos anteriores à Restauração Portuguesa. E finda com essa afirmação: Filippe II foi o Rembrandt do claro-escuro da Morte… Luiz da Silva Ramos, seu nome verdadeiro, foi assessor de Bernardino (Luís) Machado (Guimarães), Ministro Plenipotenciário de Portugal (em 1912-1915) no Rio de Janeiro, cidade em que nasceu. O mesmo Bernardino que, depois, foi Presidente da República por duas vezes – em 1915/1917 e 1925/1926. Um carioca Presidente de Portugal… Pessoa, que tinha opiniões críticas sobre nosso país (E tu Brasil,“república irmã”, blague de Pedro Álvares Cabral, que nem te queria descobrir – assim disse no Ultimatum), deve ter se divertido com isso. Montalvor, que dirigiu (foi, também, responsável pela introdução) o primeiro número da revista Orpheu, depois dirigiria a revista Centauro. E seria responsável, juntamente com João Gaspar Simões, pela edição das Obras Completas de Pessoa, pela Editora Ática, sete anos depois da morte do amigo – por ele definido como O Ícaro de um sonho. Mais tarde (2 de março de 1947), em gravíssima crise financeira e com problemas familiares, lança-se com seu carro no Tejo. Junto com mulher e filho.

Augusto Ferreira Gomes. Em maio de 1917, Gomes deixa no livro seu poema Hydromel, que começa pelo verso Meu elmo já não brilha em tardes de parada. Augusto Ferreira (de Oliveira Bogalho) Gomes foi administrador das minas do Porto de Mós, jornalista, especialista em artes gráficas e também poeta que escreveu para as revistas Orpheu 3 (que nunca seria editada), Contemporânea e Athena (dirigida por Pessoa). Seu livro Quinto Império teve prefácio escrito por Pessoa. Acabaram se aproximando a partir do interesse de ambos pelo misticismo. Ou pela crença comum na Utopia do Quinto Império. E continuaram amigos, em Lisboa, inclusive depois que Gomes passou a ter relações mais próximas com o primeiro ministro António de Oliveira Salazar. Enquanto Pessoa, ao tomar as dores da Maçonaria, escrevia poemas (censurados) como Liberdade (em 16.3.1935), dizendo que Mais que isto/ É Jesus Cristo/ Que não sabia nada de finanças – sutil crítica àquele que um dia foi professor de Ciências da Finanças, em Coimbra. Ou esse (um dos três escritos em 29 de março de 1935, com título único de Salazar), assinado pelo heterônimo Um Sonhador Nostálgico do Abatimento e da Decadência – nome inspirado em discurso de Salazar, na entrega dos prêmios (em 21 de fevereiro de 1935) num concurso em que Mensagem ganhou o Prêmio Antero de Quental para poesias curtas:

Este senhor Salazar

É feito de sal e azar.

Se um dia chove,

A água dissolve

O sal,

E sob o céu

Fica só azar, é natural.

Oh, com os diabos!

Parece que já choveu.

Luiz Pedro Moitinho de Almeida era filho do patrão de Pessoa na Casa Moitinho, onde foi escrita a Tabacaria. Essa tabacaria, só para constar, era a Habaneza dos Retrozeiros – situada na esquina da Rua da Conceição (então dos Retrozeiros) 63/65 com a Rua da Prata 65. Onde hoje está a Pelaria Pampas, especializada em vender artigos de couro argentino. E não A Morgadinha (como consta na maioria dos textos portugueses), situada esta na Rua Silva Carvalho 13/15. Bem próxima do apartamento de Pessoa. O engano se deve aos versos Janelas do meu quarto/ Do meu quarto de um dos milhões do mundo… Algo mesmo natural, posto que seria das janelas desse quarto que saudava o amigo íntimo (Joaquim) Esteves, à porta daquela tabacaria, em conversa com seu proprietário (Manuel Alves Rodrigues). Mas se trata de algo impossível. Porque o quarto em que dormia Pessoa na Rua Coelho da Rocha 16 (em Campo de Ourique), para evitar o frio responsável por suas frequentes crises de gripe, nunca teve janelas. Como confirmaram sua sobrinha Manuela Nogueira (que ocupava o quarto da frente, aquele com janelas) e António Manassés (filho do barbeiro de Pessoa – que acompanhava o pai quase todos os dias àquele quarto, para a barba).

E nem poderia, mesmo. Porque dita A Morgadinha seria constituída só em 3 de junho de 1958 (registro 32.082 na Conservatória do Registro Comercial). Enquanto o poema foi escrito bem antes, em 1928 (publicado, em junho de 1933, no número 39 da revista Presença). Voltando a Luiz Pedro, é dele o depoimento de que O Augusto Ferreira Gomes deixou-me a impressão de ser o melhor amigo de Pessoa – ou, pelo menos, aquele com quem Pessoa mais frequentemente privava.

Augusto participaria, também, no estranho episódio do suicídio do mago inglês Aleister Crowley. Nascido Edward Alexander Crowley, em criança cuspia na água benta e martirizava moscas para desafiar Deus. Consta que matou um indígena, no Oriente, para sentir o prazer de gosto para ele até então desconhecido. Um místico e charlatão que chegou a ser considerado, pelos jornais britânicos, o pior homem da Inglaterra. Crowley veio a Portugal, em 2 de setembro de 1930, para se encontrar com Pessoa – quando estava era em fuga dos credores pela falência da sua editora, a Mandrake Press. E ter-se- ia, segundo o Diário de Notícias de Lisboa (27 de setembro), suicidado no Mata-cães de Cascais. O mesmo Augusto (ligado ao jornal), em divertida trama com a participação de Pessoa, declarou ter encontrado, no local do (suposto) suicídio, uma cigarreira que seria do Mago (na verdade emprestada, para a encenação, pelo cunhado de Pessoa, Caetano Dias – que a comprara em Zanzibar). E um bilhete, em papel timbrado, do primeiro dos hotéis em que ficou (o L’Europe). Escrito por códigos e assinado Tu Li Yu. Quando Crowley, em 23 de setembro, atravessava placidamente a fronteira de Vilar Formoso, na direção da Alemanha – onde já estava, à espera, sua amante (de 19 anos) Hanni Larissa Jaeger.

O poema de Fernando Pessoa. A última página do caderno foi escrita por Pessoa. Ele e José Osório foram bons amigos, pela vida. Ficaram na Arca (de Pessoa) cópias de duas cartas que lhe escreveu. Uma de 14 de maio de 1932, em que Pessoa promete-lhe artigo sobre Goethe. E outra, sem data (mas seguramente de 1932), respondendo pergunta de José Osório: Quais foram os livros que o banharam numa mais intensa atmosfera de energia moral, de generosidade, de grandeza de alma, de idealismo? Pessoa diz terem sido, Em minha infância, e primeira adolescência… Pickwick Papers, de Dickens… Em minha segunda adolescência,… Shakespeare e Milton, assim como acessoriamente, aqueles poetas românticos ingleses… talvez Shelley, aquele com cuja inspiração mais convivi. E, no que posso chamar de terceira adolescência a… Dégénérescence, de Nordau. Findando a carta com indicação, escrita por Pessoa, de que O paradoxo é meu: sou eu. Sem mais notícias da relação entre os dois. Sabe-se, apenas, que José Osório não foi ao enterro de Pessoa (em 2 de dezembro de 1935, no Cemitério dos Prazeres).

Cada palavra dita é a voz de um morto, assim começa o poema. Difícil imaginar em que pensava, quando escreveu o verso. Talvez se lembrasse da já vasta legião de perdas que o assustavam: Os fantasmas de meus mortos eus, como definiu em The mad fiddler. O pai morre tuberculoso, em Lisboa, quando tem apenas cinco anos (1893). O irmão Jorge (1894), também tuberculoso, sem ter um ano de vida. A avó materna, Magdalena Pinheiro Nogueira (1896), na Ilha Terceira. O tio Manuel Gualdino da Cunha (1898), em Pedrouços. Duas irmãs – Magdalena Henriqueta (1901), em Durban; e Maria Clara (1906), em Lisboa. A querida avó paterna Dionísia (1907), que sofria de “loucura rotativa”, no hospício de Rilhafoles. A mãe do padrasto, dona Henriqueta Margarida Rodrigues (1909), numa casa de saúde em Belas. A tia-avó Maria e a tia-avó Adelaide (1911), em Lisboa. O amigo Sampaio Bruno (1915), em Lisboa – o mesmo que, para Pessoa, morreu logo que morreu. A tia-avó Rita (1916), em Pedrouços. E, finalmente, o querido Sá-Carneiro (Lisboa, 1890 – Paris, 1916), sua mais sólida e duradoura amizade. A Pessoa deixou bilhete, quando se suicidou no Hotel de Nice (hoje des Artistes), na zona do Butte Montmartre, em 26 de abril:

Um grande, grande abraço do seu pobre Mário de Sá Carneiro. Pessoa lhe dedica poema (Sá-Carneiro) em que diz Éramos só um.

O tema de morte é recorrente, na obra de Pessoa. Alguns exemplos, só para constar. A morte, a morte, a morte, entre mim e a vida! (Passagem das horas, Álvaro de Campos). Agora que estou quase na morte vejo tudo já claro (Dois excertos de ode, A.C.). Não sentem o que há de morte em toda a partida./ Do mistério em toda chegada,/ De horrível em todo o novo (Nuvens, A.C.). Sou já o morto futuro,/ Só um sonho me liga a mim –/ O sonho atrasado e obscuro/ De que eu devera ser – muro/ Do meu deserto jardim (O Andaime, Fernando Pessoa).

Toma-me, ó noite eterna, nos teus braços/ E chama-me teu filho (Abdicação, F.P.). Primeira Veladora: Por que é que se morre?/ Segunda Veladora: Talvez por não se sonhar o bastante (O marinheiro, F.P.). Muitos outros. Como, agora se vê, está nesse poema inédito. Superior. À altura do melhor Pessoa. E que segue, aqui, como prova de devoção.

Cada palavra dita é a voz de um morto.

Aniquilou-se quem se não velou,

Quem na voz, não em si, viveu absorto.

Se ser Homem é pouco, e grande só

Em dar voz ao valor das nossas penas

E ao que de sonho e nosso fica em nós

Do universo que por nós roçou;

Se é maior ser um Deus, que diz apenas

Com a vida o que o Homem com a voz:

Maior ainda é ser como o Destino

Que tem o silêncio por seu hino

E cuja face nunca se mostrou.

19.IX.1918.

* José Paulo Cavalcanti Filho é autor de “Fernando Pessoa, uma quase autobiografia” (Record).

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