Quando uma estrela cadente desponta no céu, você deve fazer um pedido rápido e certeiro, sem pestanejar. E deve lembrar de manter segredo sobre o seu desejo; caso contrário, ele não se realizará. “Contar um pedido feito para uma estrela tão especial como essa é proibido”, aconselham nossos anciões. Judite, uma jovem de 22 anos, fez exatamente o contrário: assim que avistou uma estrela cadente espreitando rapidamente o firmamento, ela falou em alto e bom som: “EU NUNCA MAIS QUERO AMAR DE NOVO. NUNCA MAIS!”

Judite saiu de um relacionamento de cinco anos com o coração e o espírito destruídos em mil pedaços. Depois de atravessar o árido terreno do amor via de mão única e da relação baseada em controle, ciúme, possessão, autoritarismo e falta de respeito, Judite não tinha mais forças para sonhar e, muito menos, acreditar em nada. Depois do fim do relacionamento, ela precisou procurar ajuda profissional e começou a frequentar a terapia. Também fez trabalhos comunitários, ocupou a mente com o seu dia a dia atarefado e arrumou um emprego novo. Apesar de suas conquistas terem poder de fazer as pessoas ao seu redor vibrarem, Judite estava vazia por dentro. Ela tinha certeza absoluta de que usava por fora apenas uma camuflagem de papel, nada mais.

Os dias foram se arrastando e, quando não estava interagindo socialmente em muitas das reuniões, confraternizações, comissões ou outros grupos de ‘ões’ da rotina, Judite costumava ficar sentada em sua cama olhando para o vazio. Uma guru do sucesso havia contado histórias bonitas sobre superação, autoestima, lutas e conquistas, e Judite procurou confiar naquilo, mesmo que fosse apenas para distrair sua mente. “É melhor essa enrolação para esvaziar meu bolso do que a dor de encarar que…”, mas ela nunca tinha coragem de continuar.

Em uma determinada tarde de outono, quando um vento gélido beijou as ruas da cidade e derrubou as folhas secas no pátio da igreja que Judite costumava frequentar, ela escutou um som melancólico e sereno; profundo e intenso; doce e amargo ao mesmo tempo. Sem saber de que parte ou lugar brotava essa melodia, Judite entrou apressada na igreja levando as assinaturas que tinha prometido coletar para o pároco. Ao atravessar o piso em formato de flor de lótus, Judite percebeu um homem sentado em um dos confessionários. Tratava-se de um rapaz que carregava um violino nos ombros. A aparência era comum e a única coisa que destacava aquele indivíduo era a altura descomunal. Quando Judite perguntou o que ele estava fazendo sentado no confessionário, o homem virou o rosto e ela conseguiu ver: ele era cego.

Os dois olhos estavam cobertos por uma espécie de película branca e opaca que, segundos depois, tornava-se cinza. Judite fitou com atenção o sujeito e notou que ele estava vestindo uma calça xadrez verde, sandálias franciscanas e um pulôvere preto por cima de uma camiseta branca. Involuntariamente, ela soltou:

“Puxa, você não está nada combinando, hein?”

Um sorriso em forma de lua minguante escapuliu da boca do jovem:

“E nem poderia. Mas gosto desse meu estilo sem estilo” – rebateu sorrindo.

Pela primeira vez em muito tempo, Judite sorriu pelo simples prazer de sorrir.

“Olha, são quase três horas da tarde e acho que as pessoas vão começar a chegar para se confessar. O padre João é muito pontual. Acho melhor você procurar outro lugar para tocar seu violino.”

“Tudo bem, tudo bem. Vamos lá! Mas você é o que mesmo? Uma fiscal da igreja? Tipo uma inspetora?”

“Não, não, não” -, Judite falou sorrindo. “Estou aqui só para entregar as assinaturas que coletei para a igreja. Um abaixo-assinado que pede a construção de barracas especiais para os vendedores de velas, terços e flores que ficam espalhados na porta”.

“Ah, entendi. Que bom que eles podem contar com alguém tão eficiente”. Segundos depois, o jovem gigante levantou e, colocando o violino dentro de uma caixa especial, apalpou o banco do confessionário até localizar a bengala portátil encostada na madeira.

“Você quer alguma ajuda?”

Pela primeira vez, o jovem virou o rosto em direção à Judite e ela percebeu como suas bochechas eram coradas e seu rosto sorridente tinha um brilho potente, quase possível de ser tocado. Judite não conseguiu tirar os olhos daquele rapaz e o silêncio observador foi interrompido quando ele disse o nome.

“Desculpe, eu me distraí por um momento. Qual é o seu nome mesmo?”

“Tirésias”.

“Como?”

Ele sorriu novamente e o som da sua risada era tão agradável que parecia um sussurro de boa noite.

“É estranho quando se escuta pela primeira vez. Eu nasci cego, então meus pais, que são historiadores, decidiram que o melhor a fazer seria mergulhar por inteiro na minha natureza e me deram esse nome exótico. Mas, veja pelo lado bom: eu sempre fui o único e inconfundível Tirésias. Em todo lugar”.

“Único… Inconfundível” – pensou Judite em voz alta, tentando controlar os pensamentos. Tudo o que ela mais queria era se sentir única e especial para alguém um dia, a começar por ela mesma. As máscaras enganavam todos os que moravam fora dela, mas nunca o que ela trazia por dentro.

Notando a mudança no tom de voz da moça, Tirésias sugeriu:

“Você não gostaria de tomar um ar fresco comigo? Prometo também um suco e uma fatia de bolo. Conheço uma padaria centenária aqui perto que oferece isso e uma boa dose de sossego”.

Judite fitou novamente o sujeito grandalhão e seu enorme violino. Sem saber exatamente a razão, ela decidiu aceitar. Após deixarem a igreja, Judite e Tirésias caminharam pelas ruas cobertas de folhas secas. Durante o percurso, eles conversaram sobre música (“Como assim QUALQUER música clássica é melhor do que o Elton John cantando The One?”), pintura (“Como não enxergo, eu apenas sinto a pintura de uma forma que não vou conseguir explicar para você em apenas algumas horas. Precisaremos nos encontrar mais vezes”), teatro (“Não é possível que não tenha visto… Ou melhor, ouvido, aquela peça sobre a cigana e Cervantes?!) e literatura (“Sim, sim, eu tenho muitas formas de ler os livros que você mencionou. Inclusive por áudio. Acabei de ler Benito Cereno, de Herman Melville. Sim, o mesmo autor do livro da baleia. Moby Dick é o nome, viu?”).

As afinidades cresciam mais e mais. Na padaria, Judite ficou espantada com todos os conhecimentos que aquele homem alto e sem a menor noção de moda possuía. Ela surpreendeu-se ainda mais por estar apreciando tanto a companhia dele. Por alguns minutos, uma imagem sombria surgiu em sua mente: E se ele pudesse vê-la, estaria tão interessado assim? Tão disponível e animado? Judite gostava de sua aparência e, muitas vezes, gastava bem mais do que podia com produtos de beleza. Mas a quem ela queria enganar? O conjunto de seus esforços era apenas aparência e, de algum modo, ela percebia que com Tirésias nada seria igual; ele poderia ver mais e mais além da superfície.

Depois da tarde animada que passaram juntos, eles trocaram telefone e combinaram de conversar outras vezes. Convivendo com Tirésias, Judite aprendeu a sentir o sabor dos alimentos, os cheiros e os ruídos do mundo de forma diferente. Ele ensinou uma técnica para aguçar os sentidos e observar com o coração:

“É o que eu chamo de O Olho do Coração. Ouvi isso uma vez em um desenho japonês e nunca esqueci. Claro, devo dizer que ali essa ideia era usada para o mal, então eu decidi aperfeiçoar. Posso sentir tudo ao meu redor com vida, sem os disfarces convencionais. Veja como essa música da banda Celtic Woman consegue te carregar para outro tempo” – , disse, colocando para tocar no celular a faixa The Butterfly. Segundos depois que aquele violino começou a tocar, Judite sentiu seu corpo flutuar, deixar o chão e desaparecer em uma nuvem.

A experiência encantou tanto Judite que, para retribuir, ela apresentou a Tirésias seu baú de preciosidades. Ela nunca mostrara aquela caixa para ninguém e seria a primeira vez que abriria mão de um segredo pessoal. Nela, havia cartas, objetos pessoais de sua infância, folhas de cadernos e papéis de carta enfeitados, além de um pequeno diário que, depois de alguns meses, ela tomou coragem e leu para Tirésias.

Tanta amizade acabou em paixão. Judite pensava em Tirésias e sonhava acordada com os sons do violino que se misturavam com as risadas agradáveis do amigo-amor. Havia dentro da alma daquele homem uma paixão irrefreável pela vontade de existir, de sentir, de criar. E tudo isso fascinava o coração seco de Judite.

No entanto, com profundo medo de se machucar novamente, a moça decidiu se afastar daquele “Olho do Coração” o quanto antes. Ela não atendeu mais os telefonemas dele, nem retornou suas mensagens, e-mails e evitou frequentar os mesmos lugares de Tirésias. Certo dia, Judite fez algo que jamais imaginou que poderia fazer: ela passou pelo violinista cego e fingiu que não o conhecia. O que ela não contava, ou tinha esquecido, era que Tirésias tinha os outros sentidos muito apurados e reconheceu o perfume de Judite. Triste, ele interrompeu seu trajeto até que ela se afastasse. Só depois, Tirésias esticou a bengala e continuou seu caminho.

Os próximos dias não foram fáceis; Judite sentiu o doloroso aperto no peito, acompanhado de intensa amargura, tomar conta de sua alma. No entanto, nem mesmo a racionalidade humana, muitas vezes egoísta e imatura, é capaz de deter as tecelãs do destino. Todas as pequenas e grandes coisas que estão marcadas em algum ponto da história de cada um de nós irão ganhar vida, mais cedo ou mais tarde. E a biografia de Judite não escapou da regra.

Na véspera do seu aniversário de 23 anos, Judite estava terminando de revisar alguns documentos que precisaria despachar no trabalho. Chovia torrencialmente. No momento em que massageava o pescoço para evitar torcicolos, Judite ouviu ao longe o som de um violino. Das pequenas cordas, uma canção dançava contra a chuva. “The One”, de Elton John, atravessava as gotas pesadas para chegar aos ouvidos de Judite. Afastando a cortina, ela viu Tirésias executando habilidosamente nota por nota. O tempo estava frio e o rapaz completamente encharcado no jardim de sua casa.

Em menos de cinco minutos, Judite abriu a porta, saltou um puff enorme no formato de elefante e correu para fora da casa. Parada em frente ao roseiral da mãe, Judite finalmente entendeu o que significava “ver com o coração”. Esticando os braços, ela abraçou e beijou Tirésias.

No céu, acima das gotas de chuva, uma estrela cadente passeava mais uma vez pela Terra. Em seus pensamentos, a estrela repetia o que nossos ancestrais já aconselhavam: “Contar um sonho é proibido. E fazer pedidos da boca para fora também. Só importa o que vem do coração.” Dito isso, ela seguiu seu rumo e acenou, discretamente, para todos aqueles que a saudavam com seus pedidos.

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