– Eu estou sempre aqui, minha filha. Sou uma espécie de observador invisível. Sempre perto, apesar de distante. Ando pelo meio termo, se é que meios termos existem nessa vida de cão.

Essas foram as palavras que escutei de um senhor grisalho, aparentemente octogenário, sentado de maneira espaçosa em um dos bancos de uma praça do centro da cidade. Outrora habitada por inúmeras barraquinhas de camelô e o pessoal do pós-Woodstock, a praça foi desocupada, “reformada” e agora é palco de descanso para transeuntes, sala de reunião para membros do ócio refinado, local de peregrinação para batedores de carteira e cama ao ar livre para adeptos da famosa “sesta nossa de cada dia”.

Antes de ter essa ambientação, a tal praça foi um ponto valorizado, importante e referencial da cidade, mas isso foi há muito tempo e ninguém parece se lembrar mais – muitos sequer imaginam outro formato para o espaço.

Enquadrada na opção daqueles que conhecem o passado, mas estão preocupados mesmo é com o presente, sentei em um dos bancos enquanto terminava meu copo geladíssimo de suco de maracujá. O vento passeava agradável, sem a sensação térmica opressora que costuma assolar a cidade das maravilhas, de forma que tudo parecia bem para mim.

Repentinamente, um senhor chega e senta ao meu lado. Não pude deixar de notar que o homem ficava olhando para os lados insistentemente, como se estivesse procurando por alguém ou alguma coisa. “Um encontro, quem sabe”, pensei. “Talvez tenha marcado com alguma mulher. Pode até ser um encontro furtivo, pelo jeito ele está, com a ansiedade tomando conta. Ih, cara, preciso sair daqui. Vou atrapalhar os esquemas do vovô”, sentenciei para mim mesma.

Lá estava eu, com meus óculos de grau de armação fina, cabelo preso pela metade e um aspecto inegável de “nada a declarar”. Ao observar a agitação do velho, levantei depressa e já estava dando o primeiro passo para fora dali quando, de forma súbita, o homem começou a falar sozinho. As palavras eram atiradas no vazio, sem direcionamento ou sequer um olhar de cumplicidade. O homem falava exasperado, dizendo que estava ansioso e que, naquele maldito dia, o atraso lhe custaria bem caro.

– Eu não sei se a perdi ou se ela já atravessou a rua -, lamentou-se para ninguém.

Intrigada e fugindo totalmente dos meus protocolos pessoais, perguntei para o homem se ele procurava alguém, ao que me respondeu:

– Decididamente não.

“Ora, ora, ora! E como assim ele está preocupado se a mulher (será uma mulher?) passou ou não? Esse cara está estranho”, confabulei interiormente. Foi nesse momento que o velho me convidou a ouvi-lo e começou a narrar sua odisseia – ou o que ele acreditava que fosse.

Sou jornalista, mas evito falar demais e trago pulsando dentro do peito uma veia observadora. Decidi exercer o meu interesse por uma boa narrativa, já que não sou dada a mexericos. Holanda, esse era o nome do octogenário, revelou que aparecia naquela praça de segunda à sexta-feira porque queria ver um grande amor passar.

Ele contou que namorou durante muito tempo uma mulher. O relacionamento se estendeu por toda a adolescência e juventude de Holanda, até que um acontecimento escabroso rompeu bruscamente o compromisso entre os dois.

– Não quero falar o que foi pra você, minha filha. Você é jovem, pode não entender. De lá para cá, passaram-se mais de sessenta e cinco anos, e eu nunca esqueci.

Acabei sabendo por meu narrador que a tal mulher amada havia se casado com outro sujeito, tido filhos, netos e até bisnetos. O velho Holanda também seguiu o curso do rio, teve outra família e uma vida diferente daquela que norteava seus sonhos juvenis. Mas algo faltava. Sempre faltaria.

Achei a história comovente, claro, mas com nível de praticidade, lógica e amor próprio beirando à nulidade. “Por que o homem simplesmente não deixou a vida caminhar? Por que ainda hoje se tortura?”, perguntava a mim mesma. Então, saindo do meu casulo silencioso, indaguei:

– O senhor tem alguma chance de ficar junto com essa mulher?

– Não, eu não tenho a menor chance. Eu estou perto, mesmo de longe, e tenho a esperança de que um dia esse sentimento se transforme, sabe? Quero que isso pare de crescer e simplesmente fique sossegado em algum lugar bem lá no fundo da minha memória.

Atônita, ouvi o discurso do velho. Sem dúvida, essa é uma das reflexões mais bonitas que já escutei pegando carona nas asas do acaso, quase sem querer. Pouco depois, Holanda se levantou e disse que precisava ir. Tinha perdido de vista a tal mulher, o tempo já havia esgotado. Agradeceu a atenção e saiu sem sequer perguntar o nome da jovem que o escutara, sem pedir lenço ou documento. Na verdade, não interessava. O velho queria contar sua história; ele precisava. Eu continuei ali, mergulhada em pensamentos e sem mais suco de maracujá no copo.

Lembrei quantas vezes observei à distância muitas coisas em minha vida. Comecei a remoer minhas atitudes de observadora invisível e silenciosa quando estava no colégio e sofria de amor platônico; ou quando passei no vestibular de Direito e, naquela época, meu sonho era fazer Jornalismo; ou ainda, quando, em algum momento da minha vida, meu coração bateu mais rápido por cafeína com gosto de tormenta.

Lembrei que só amei dois homens em toda a minha vida. Um deles, o mais importante e inesquecível, tornou-se meu marido. O outro está para sempre confinado nas lembranças do passado. Ainda posso lembrar do rosto dele, de suas tatuagens espalhadas pelo corpo, dos olhos azuis escuros rodeados por olheiras gigantes e do cabelo de sol… Pensei nos momentos de indecisão, seleção e esquecimento.

Eu consigo perceber agora como todos nós somos observadores silenciosos, invisíveis como grão de poeira no meio da imensidão das coisas. Ficamos parados, observando pelos vidros quebrados e jogados no fundo do quintal. Continuamos inertes acompanhando os movimentos dos desejos, mergulhados na imensidão das lembranças e conformados com o destino das coisas.

Inspirei e expirei profundamente. Naquele momento, sentada no banco da praça, eu tive certeza: grandes esperanças podem nascer de cacos de vidro. Levantei e fui embora. Abandonei o copo de plástico no banco.

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