O cheiro de feijão queimado atravessava telhados, muros e quintais para invadir as narinas de Wesley. O velho relógio de parede da cozinha, impregnado por gordura e poeira, movia-se em direção ao número cinco. Wesley estava terminando de esfregar a quinta camiseta antes de preparar o café e limpar a louça. Precisava sair às cinco e meia em ponto se quisesse atrair os primeiros clientes do dia. A regra da feira era simples: quanto mais cedo, mais fresco. Desde os dez anos, essa frase ecoava nos ouvidos do menino magricela, de jeito rude, cabeça em forma de fósforo e dentes ligeiramente afastados. Agora, recém-aprovado na faculdade de Direito, Wesley considerava seriamente em pedir ao pai que um dos irmãos caçulas ocupasse seu lugar. Como futuro advogado, ele não poderia ser avistado carregando caixas e sacos sujos, repletos de frutas, verduras e, algumas vezes, frangos e porcos abatidos.

Estendendo as camisetas no varal feito de arame, Wesley se dirigiu à cozinha e preparou um rápido café. Puro, amargo, sem uma gota de açúcar. Combinava o gosto forte do líquido negro com pedaços de pão dormido. A manteiga já tinha acabado há quase três dias e ninguém lembrou ou conseguiu comprar. Suspirando forte, Wesley foi ao banheiro, escovou os dentes e viu sua imagem desaparecer na escuridão do espelho de moldura laranja, lembrando um mosaico de tijolos. Ao lado do pai, Wesley subiu no pequeno caminhão da família e partiu.

O céu nublado começou a dar lugar à gotas de chuva cada vez mais fortes, formando poças e encobrindo buracos com água e lama. Olhando através do vidro, Wesley viu um homem e uma garota caminhando apressados em um pedaço de calçada. Reconheceu imediatamente os Matos, vizinhos da avó. Seu Matos equilibrava seis sacos pesados nas mãos, enquanto Carla sustentava duas garrafas pesadas de alguma bebida escura. Apesar do frio, a garota usava short curto e uma camiseta básica. Fragmentos de lama grudavam nos chinelos e eram catapultados para as pernas brancas de Carla, formando um quadro abstrato. Wesley sentiu nojo. Como aquela criatura desengonçada permitia uma imundice daquelas?

– Seu Matos! Bora lá, entre aí com a Carlinha! Esse diacho de chuva tá atrapaiando tudo! -, gritou aos cuspes o pai de Wesley.

Reticente, Wesley disse um bom dia quase inaudível e cedeu o lugar mais próximo da porta à Carla.

– Eita, diacho, Seu Matos! Tô feliz demais! Meu fião aqui vai começar o curso pra ser adevogado. Adevogado, Seu Matos! Eitaaaa, diacho bom!

Wesley afastou os pensamentos das conversas do pai e concentrou suas energias no primeiro dia de aula. Depois de ser aprovado no curso de Direito de uma conceituada faculdade privada, Wesley correu atrás de programas de bolsa de estudo integral. Conseguiu. Não poderia deixar que seu corpo e seu espírito padecessem da mesma doença que acometeu toda a sua família: o mal da mediocridade. O rapaz não entendia como os avós, pais e tios insistiam em carregar sacos e mais sacos para feiras mal cheirosas. A vida fedia a feijão queimado e sonos interrompidos. Não, ele não poderia permitir. A imagem das pernas da vizinha sujas de lama atormentaria sua mente por muitos e muitos dias.

Wesley cumpriu todas as suas obrigações e, depois das onze, preparou a melhor roupa para ir à faculdade. Animado, o pai ofereceu uma carona até à instituição, mas o jovem recusou com uma mentira qualquer. Preferia chegar de ônibus e se esgueirar até a entrada do que irromper portão adentro com aquele calhambeque sujo. No contato inicial, Wesley entrou na sala branca, de cadeiras brancas e quadro de acrílico branco. Foi um dos primeiros a chegar, já que a aula só começaria às duas horas da tarde. Com o tempo, mais alunos foram chegando e formando grupos. Perto de Wesley, nas últimas cadeiras, outros três estudantes bolsistas ocuparam o lugar. O jovem feirante pensou nas palavras da avó, perdidas em algum momento da infância: “Os iguais se atraem”. Naquele instante, Wesley soube reconhecer e aceitar seus iguais. Faltando dez minutos para o início da aula, um senhor de quase oitenta anos chega apressado e fecha a porta. Antes que ele tocasse o trinco, uma garota de pele alva, longos e lisos cabelos negros, bochechas de um vermelho claro e um sorriso de dentes perfeitos entra na sala. Com uma voz fina, quase infantil, ela diz:

– Licença, professor Cássio Emanuel. Posso entrar?

O mundo de Wesley parou. Usando uma blusa de malha branca, saia curta de listras azuis e um invisível cordão de ouro, a moça flutuou entre as cadeiras vazias até ser puxada pelo braço por um rapaz baixo, de rosto fino, beirando ao feminino.

– Manu! Ei, Manu! Vem sentar aqui!

Entre sorrisos, beijinhos, abraços e gritinhos abafados, a dama de branco sentou entre quatro meninas e esse rapaz de feições delicadas. Daquele dia em diante, Wesley tentaria chamar a atenção da resplandecente Manuela cinco vezes por semana. Filha de um casal de deputados, a moça frequentou as escolas mais caras da cidade e sua família conhecia quase todos os professores da faculdade. Essa também era a realidade de muitos protótipos de pedantes que estavam se formando ali. Com seu jeito rude, Wesley não sabia como se encaixar. Por vergonha ou orgulho, andava com um número reduzido de pessoas e estudava muito. Suas notas eram altas, os elogios pipocavam de todos os lados, mas ele continuava se sentindo inferior e perdido. Manuela nunca o notara ou sequer trocara uma palavra com ele. Até mesmo em uma semana tumultuada de provas e trabalhos, enquanto folheava uma de suas anotações na biblioteca, a moça não sorriu ou sentou do lado de Wesley. Atormentado, ele prometeu a si mesmo que seria sempre o melhor. Só assim poderia conquistar o que ninguém da sua pobre ascendência havia conseguido; o filho de feirante queria um lugar ao sol. E lutaria por isso. Ele dormia e acordava sonhando com um lugar em que o odor de feijão queimado seria apenas um pesadelo distante, assim como sacos pesados e pernas sujas de lama.

Cinco anos se passaram. Os resistentes da turma se formaram. Há sempre malucos ou abastados – quem sabe as duas coisas – que desistem no meio do caminho. Assim foi com a garota que mudou para o curso de Jornalismo e a outra que abandonou tudo para fazer Administração. E o filho de um conhecido empreiteiro que decidiu ser filósofo. Essas pessoas poderiam ter o luxo de decidir que profissão seguir. Wesley não. Seus sonhos de pirâmides e tumbas de faraós não permitiam espaço para arte, criatividade ou devaneios. Manuela nunca seria sua se ele continuasse um rosto desconhecido, dono de uma carteira vazia.

Mais cinco anos se passaram. Wesley Ferreira fez carreira na área criminal. Mudou de vida e comprou uma casa nova para a família em um bairro diferente do seu, claro. Quase nunca visitava seus pais ou irmãos, apenas os mantinha com o montante de dinheiro que seu bem sucedido escritório fazia. Em todos os anos, acompanhava e seguia os passos de Manuela; ele chorou sentado no chão do banheiro quando ela foi morar em outro estado e depois em outro país; comprou o vinho mais caro e mandou entregar na casa da jovem assim que ela retornou. Wesley acompanhava sites de fofoca, colunas sociais e procurava frequentar os mesmos ambientes que Manu. Ela nunca dirigiu mais do que um aceno de cabeça. Nem mesmo quando Wesley começou a namorar a filha mais velha de um influente empresário ou quando desfilou com modelos conhecidas. O que poderia estar errado? Com esforço próprio, ele conquistou patrimônio, poder, posição social… Até mesmo submeteu seu corpo e rosto a severos tratamentos estéticos para corrigir supostas imperfeições. Por que aquela ingrata o desprezava?

Em uma noite de setembro, o conhecido advogado Wesley Ferreira leu em uma coluna social que Manuela Camille Bragança de Castro Barroso Mendes iria se casar com o promissor engenheiro químico Carlos Ivo da Maia de Queiroz Telles no próximo sábado, em uma tradicional igreja da capital. A festa seria em uma badalada…

Wesley parou de ler. A visão ficou turva. Tanto esforço, tanta dedicação, tanta perseguição… E tudo terminou exatamente como começou. Do alto do seu apartamento com vista para o principal rio da cidade, Wesley deixou que o último vento do inverno invadisse seu coração. Ele lembrou… Lembrou do feijão queimado, das mãos cheias de sabão, das madrugadas insones, do sorriso alegre do pai enquanto assobiava a melodia das músicas sertanejas que tanto gostava de ouvir ou da forma como a mãe cantava com seu inglês improvisado. Wesley lembrou da feira, do café da manhã quente, dos irmãos dormindo, do Seu Matos segurando sozinho enormes sacolas de compras nas costas e da sorridente Carla, sempre ajudando o pai e encharcando as pernas de lama.

Então, com um impulso, Wesley Ferreira acordou. O relógio na cozinha marcava quatro e quarenta da manhã.

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