“A quem Deus quer destruir, antes lhe tira o juízo”, enuncia o provérbio latino que vem atravessando séculos. É com essa destruição em potencial que “Filme Demência” (1986) fortalece a potência de transformar insanidade em esfinge. Com direção de Carlos Reichenbach e co-roteiro de Inácio Araújo, o filme adapta livremente a famosa lenda alemã de Fausto, o homem que fez pacto com o diabo.

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Em um mundo de realidades viscerais, Fausto (Ênio Gonçalves) está falido no campo das finanças e dos afetos. Com o casamento em ruínas, Fausto protagoniza uma cena de loucura logo nos primeiros minutos do filme onde, em um ímpeto de fantasia e desejo, rasga a camisola da esposa (Imara Reis), dando início a uma sequência de mordidas. Irritada, a mulher levanta, repele o marido e diz: “Não adianta enlouquecer, Fausto”. Essa é a pedra-de-toque da trama, revelando o modo de ver e o modo de dizer de uma criação repleta de emblemas.

Impotente diante de tantas derrotas, Fausto decide vagar armado pelas ruas de São Paulo. Em suas deambulações, o falido protagonista procura alento em visões, fantasmagorias e no mergulho vertiginoso dentro de uma cidade caótica. No seu trajeto rumo ao nada, Fausto esbarra com Mefisto (Emílio Di Biasi) em frente ao cartaz do filme “As Dores do Sonho” – referência significativa na trama. Desse momento em diante, uma série de personagens singulares começam a surgir no caminho de Fausto, tais como Wagner, o amigo de infância, típico malandro de delírios, assim como um universo de bêbados, delinquentes, poetas de mesa de bar, policiais, prostitutas, intelectuais insanos e toda sorte de entidades noturnas marginalizadas pelas rotulações de uma sociedade morta, roedora íntima de restos e detentora do poder de fazer cadáveres bombearem sangue no lugar de corações.

Esse é o universo que Fausto precisa descortinar para penetrar no sentido secreto de sua própria vida. A quem interessa a ascensão e queda de um homem aterrorizado por uma vida fantasma? Só a ele mesmo e, algumas vezes, nem isso. Nesse mosaico de percepções revestidas de impulsos diabolicamente humanos, o atormentado Fausto – em uma atuação arrebatadora de Ênio Gonçalves – esbarra com um obstinado fumante que procura cigarros na antiga fábrica de sua família, dando ao protagonista a chance de acordar dos pensamentos, mesmo que por um átimo. Seguindo sua miscelânea de loucuras reais, Fausto encontra aos atropelos uma moça simples e cheia de luxúria, uma velha carrancuda que pede carona e uma jovem igualmente caronista; esta última interpretada pela atriz Vanessa Alves, reconhecida como a musa de Reichenbach. Vanessa é consagrada no cinema nacional por participar das movimentações cinematográficas da Boca do Lixo, importante ciclo de produções da sétima arte tupiniquim. A atriz iniciou a carreira nas telonas ainda no final da adolescência, atuando em diversos filmes de Carlos Reichenbach, entre eles “Paraíso Proibido” (1981), “Extremos do Prazer” (1984), “Anjos do Arrabalde” (1987) e “Garotas do ABC” (2003).

Em “Filme Demência”, Vanessa é a jovem de corpo escultural que pede carona perto da praia. Com o desembaraço típico dos adolescentes, a moça faz o papel da Eva bíblica que mordisca a maçã do pecado e oferece ao indeciso Adão. Na sequência, o cigarro da fábrica falida de Fausto volta à tona, reavendo espectros. O realismo fantástico fica por conta da onipresença de Mefisto, tentando e revivendo Fausto durante toda a trama. Considerado pelo próprio Reichenbach como uma obra pessoal, introspectiva, “Filme Demência” traz à tona a força de um cinema produzido com humor ácido, revelando a superfície da alma de um homem comum que vê sua vida coordenada por uma voz interior mais poderosa do que a razão. Resta sentir no ar o aforisma que brilha em “Filme Demência”, captado à beira do abismo dos últimos instantes: “O homem progride porque é desgraçado e se aperfeiçoa em desgraça para a desgraça”.

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