O escritor norte-americano Thomas Bulfinch, ao escrever a obra O Livro de Ouro da Mitologia (2016), aventou no capítulo XXXV sobre quatro teorias esboçadas por filósofos que teriam por finalidade explicar a origem das narrativas mitológicas. São elas: Teoria Bíblica, Teoria Histórica, Teoria Alegórica, Teoria Física. Sucintamente, o autor delineia os principais aspectos que caracterizam cada teoria, iniciando pela Teoria Bíblica, onde “todas as lendas mitológicas têm sua origem nas narrativas das Escrituras, embora os fatos tenham sido distorcidos e alterados”. Os personagens bíblicos assumem formas mitológicas e os fatos que contextualizam a formação desses mitos ganham formato de narrativas bíblicas. Para esta corrente, “Deucalião é apenas um outro nome de Noé, Hércules, de Sansão, Árion, de Jonas etc”. O autor alerta que apesar das coincidências curiosas, a teoria não pode ser exagerada para explicar a maior parte das lendas, pois, possivelmente, cai no contrassenso.

Para a Teoria Histórica, todas as personagens citadas na mitologia provêm da realidade e existiram em algum ponto da história, reservando aos acréscimos e roupagem mística das lendas e fábulas a reserva de épocas anteriores. As narrativas mitológicas integram elementos históricos, tal qual o mito de Éolo, rei e deus dos ventos, que, dentro do cerne desta teoria, surgiu do exemplo de justiça e piedade de um governante homônimo, que reinou em alguma ilha do Mar Tirreno e ensinou aos nativos procedimentos até então avançados de navegação com a vela, bem como o dom de prever as mudanças atmosféricas através da observação de mudanças do tempo e dos ventos. Logo, esta teoria faz uso da apropriação de personagens mitológicos para explicar feitos históricos e o florescimento da civilização.

Já para a Teoria Alegórica, os mitos fomentados por sociedades remotas eram alegóricos e simbólicos, isto é, expressavam verdades morais, filosóficas, religiosas, sociais e históricas por meio de representações que tomaram para si uma autenticidade literal. Bulfinch exemplifica a Teoria Alegórica com o mito de Saturno, reconhecido pelos gregos como Cronos (Tempo), que devorava os próprios filhos. Segundo esta teoria, essa ideia é baseada em uma interpretação, um símbolo, pois o tempo traz um fim a tudo que teve um começo, sendo assim figurativamente mencionado com o criador que come a própria prole.

O último sopro teórico apresentado por Bulfinch para explicar a origem das narrativas mitológicas ganha espaço através da Teoria Física, que enquadra os elementos água, fogo e ar, primitivamente adorados de forma religiosa, e as principais divindades ancestrais como personificações das forças da natureza. Essa personificação transformou as manifestações naturais meios pelos quais as divindades se faziam presentes na vida humana. Como acentua o escritor, “os gregos, cuja imaginação era muito viva, povoaram toda a natureza de seres invisíveis e supuseram que todos os objetos, desde o sol e o mar até a menor fonte ou riacho, estavam entregues aos cuidados de alguma divindade particular”.

As contribuições destas quatro teorias são suficientes e verdadeiras até certo ponto, pois a mitologia perpetuada pela história oral de uma nação vem de diversas fontes e crenças combinadas, e não faz referência a apenas uma ou outra. A origem e a necessidade dos mitos se dão pelo desejo do homem de buscar justificativas para os fenômenos e circunstâncias naturais que ele não pode compreender. Essa necessidade de explicar a realidade de forma simbólica acompanha a própria existência do homem, conforme cita o mitógolo Mircea Eliade em “Mito e Realidade”: Ao recitar os mitos, reintegra-se àquele tempo fabuloso e a pessoa torna-se, consequentemente, contemporânea, de certo modo, dos eventos evocados, compartilha da presença dos Deuses ou dos Heróis”.

Mito: metáfora da condição humana

Transpor o sentido objetivo (sentido próprio) para o sentido figurado. Esta é uma das definições dicionarizadas para metáfora, uma das figuras de linguagem presentes na essência do mito, visto que ela cria denominações, formas de significado e busca caracterizar, seja por falta de uma designação apropriada ou pela tentativa de distinguir algo, alguém ou uma situação de forma convincente e/ou original. Ultrapassar os limites da linguagem e procurar transmitir ideias pelos mais diferentes meios é um dos objetivos da metáfora.  Como avalia Othon Garcia na obra “Comunicação em Prosa Moderna”:

A existência de similitudes no mundo objetivo, a incapacidade de abstração, a pobreza relativa do vocabulário disponível em contraste com a riqueza e a numerosidade das ideias a transmitir e, ainda, o prazer estético da caracterização pitoresca constituem as motivações da metáfora.

A metáfora sugere outras formas de expressão, utilizando elementos subjetivos, abstratos, conotativos, isto é, que variam segundo o contexto. De forma didática, Garcia exemplifica que “pode-se definir a metáfora como a figura de significação (tropo), que consiste em dizer que uma coisa (A) é outra (B)”. Isso acontece pela semelhança entre os elementos A e B, percebida pelos traços distintos (predominantes) entre ambos. Considerando a perspectiva mitológica, a metáfora constrói representações, projetando-as de geração em geração e variando segundo o espírito de cada sociedade. O sistema religioso, enquanto fenômeno mitologizado, é acompanhado pelos mais variados tipos de metáforas, como exemplifica em pormenores Joseph Campbell na obra O Poder do Mito, ao mencionar a passagem bíblica na qual Jesus Cristo ascende ao paraíso. Segundo Campbell, se a mensagem fosse compreendida em caráter literal, ela não teria a relevância que lhe foi atribuída há séculos, já que levaria a crer que alguém, de fato, seria capaz de subir aos céus, possibilidade fisicamente inexistente. Partindo desse pressuposto, o autor reforça o conceito de metáfora como “uma imagem que sugere alguma outra coisa”, convertendo imagens exteriores em reflexos do interior. Por meio do uso de metáforas, atenua-se a tarefa de entender as múltiplas faces de significação do mito como substância que justifica a condição humana, dando-lhe consciência de descobertas que transcendem o pensamento.

Em todas as fases da evolução do homem, o mito assumiu características narrativas para explicar formas de comportamento social, normas, crenças, princípios e valores. Ele transforma o olhar em centro, abrindo possibilidades para que homens e mulheres se reconheçam nas histórias expostas por seus antecessores e cristalizadas no seio da sociedade em que vivem. Dito de outro modo, “mitos são histórias de nossa busca da verdade, de sentido, de significação, através dos tempos”. Enquanto ser dotado de capacidades e espreitado por limitações, o homem necessita da dimensão do simbólico e do sagrado, buscando renovar as formas míticas dentro do ambiente do qual é partícipe, pois, como afirma Campbell:

Os mitos são metáforas da potencialidade espiritual do ser humano, e os mesmos poderes que animam nossa vida animam a vida do mundo. Mas há também mitos e deuses que têm a ver com sociedades específicas ou com as deidades tutelares da sociedade. Em outras palavras, há duas espécies totalmente diferentes de mitologia. Há a mitologia que relaciona você com sua própria natureza e com o mundo natural de que você é parte. E há a mitologia estritamente sociológica, que liga você a uma sociedade em particular. Você não é apenas um homem natural, é membro de um grupo particular.

A mitologia está diretamente relacionada com os estágios da existência, onde “rituais de passagem” persistem através dos tempos com as mais diferentes linguagens. Um modelo claro da inexorabilidade dos ritos pode ser observado em determinadas tribos aborígines que, mesmo no contexto atual, ainda usam os antigos rituais de circuncisão para simbolizar a passagem da infância para a idade adulta. Dentro da sociedade moderna, uma forma de simbolizar o renascimento para uma nova vida reflete na conquista da independência financeira, por exemplo. Nesta etapa, o(a) garoto(a) abandona a infância e tudo que a envolve enquanto dimensão existencial, e passa a exercer o controle de sua vida. Este entendimento está ancorado na assertiva de que as razões básicas que sustentam e imortalizam a existência dos mitos têm sido sempre as mesmas, e “a chave para encontrar sua própria mitologia é saber a que sociedade você se filia. Toda mitologia cresceu numa certa sociedade, num campo delimitado”.

Cada ser humano guarda reminiscências de símbolos e mitos do passado, que se unem através dos sonhos. Essa noção toma por base as pesquisas levantadas pelo Campbell com âncora nos estudos de psicanalistas como Carl G. Jung, que levanta a ideia de uma história da mente, concebida pelo estudo dos símbolos e pela psique. Esta última seria responsável por conservar rastros das fases de desenvolvimento humano, caracterizado por Inconsciente Coletivo. De maneira sumária, inconsciente coletivo é entendido como conjunto de símbolos, mitos, arquétipos e outras imagens compartilhadas por toda a humanidade no decorrer dos tempos. Embarcando nessa noção, Campbell entende que sonhos são formas de expressão dos mitos que formam cada indivíduo e modelam a identidade coletiva da célula social e “mitos e sonhos vêm do mesmo lugar. Vêm de tomadas de consciência de uma espécie tal que precisem encontrar expressão numa forma simbólica”, reforça Campbell. E a partir do reconhecimento do mito como parte do imaginário coletivo, os tempos modernos recriam modelos mitologizados, transformando-os em referências, ícones. “Quando se torna modelo para a vida dos outros, a pessoa se move para uma esfera tal que se torna passível de ser mitologizada”, lembra Campbell. Um dos principais recursos para iniciar uma imortalização do indivíduo é transformando-o em herói, um ser predestinado e elevado por clara influência espiritual. Os passos para compreender o processo de heroificação, fundamental no surgimento da narrativa mitológica, serão elucidados, na medida do possível, a seguir.

A jornada do herói como construção de epopeias vivas

Atravessar obstáculos, suportar dores, vencer intempéries e experimentar a iluminação suprema através do sacrifício. Eis o que constitui a jornada enfrentada pelo herói, entidade que personifica o ideal perseguido pela humanidade, dentro dos mais variados ambientes e realidades. Tendo em vista que a humanidade necessita de mitos que produzam identificações entre o indivíduo e o ambiente ao qual pertença, os heróis assumem o papel de guias espirituais, forças sagradas capazes de compreender o mundo com macro e diferencial consciência. Os sacrifícios que precisou enfrentar para cumprir a missão da qual foi incumbido reforçam a predestinação do herói, a capacidade de ser o protagonista e criador do próprio destino. Assim como nos grandes rituais de passagem, o herói é privado do seu caráter comum e veste o manto da vocação.

É extraordinário perceber como a mitologia institui grande quantidade de histórias que remetem a feitos heroicos, transformando homens em algo que transcende até mesmo definições, afinal, “o herói é alguém que deu a própria vida por algo maior que ele mesmo”. Este ideário estampa livros ilustrados sobre mitologia, bastando que o leitor escolha uma história mesmo que de forma aleatória; também se faz presente através dos meios de comunicação ditos de massa, como cinema, revistas em quadrinhos, televisão, música. Tomando como exemplo personagens como Super-Homem, Batman, Homem-Aranha, oriundos das histórias em quadrinhos e presentes no imaginário infantil e adulto, cada ambiente social se apropria dos seus seres lendários. Considerando a explanação, é oportuno evidenciar características similares na trajetória dos três ícones da cultura de massa: todos eles sofreram com a perda dos pais biológicos e foram criados por famílias adotivas; mesmo com personalidades e circunstâncias distintas, cada qual possui uma grande fraqueza e precisa lutar para superá-la, abdicando de uma vida normal para cumprir sua missão, que é proteger o mundo. Nesta descrição elementar, percebemos nos três heróis características de separação, iniciação, sacrifício, retorno, bem como de domínio do cotidiano para atender a um propósito maior. Campbell diz que:

A façanha convencional do herói começa com alguém a quem foi usurpada alguma coisa, ou que sente estar faltando algo entre as experiências normais franqueadas ou permitidas aos membros da sociedade. Essa pessoa então parte numa série de aventuras que ultrapassam o usual, quer para recuperar o que tinha sido perdido, quer para descobrir algum elixir doador da vida. Normalmente, perfaz-se um círculo, com a partida e o retorno.

Todas as provações, experiências e sacrifícios pela qual o herói passa e padece destacam traços de uma personalidade em ascensão, diretamente conectada com os interesses da humanidade. É necessário partir para realizar e, assim, retornar para o abraço de reconhecimento daqueles que foram o motivo da partida. Em uma afirmativa primorosa, Campbell revela a pedra-de-toque da epopeia do herói: “Você deixa o mundo onde está e se encaminha na direção de algo mais profundo, mais distante ou mais alto”. O autor torna patente que, dessa forma, o abnegado mortal alcança o que faltava à sua consciência, anteriormente distante da bem-aventurança. Neste ponto, valida-se a observação expressa no livro O Herói de Mil Faces, para quem “o percurso padrão da aventura mitológica do herói é uma magnificação da fórmula representada nos rituais de passagem: separação-iniciação-retorno – que podem ser consideradas a unidade nuclear do monomito”. Ao aproximar o sagrado, o intocável e divino, o mito revela que “no fundo do abismo, desponta a voz da salvação”, isto é, a ideia do espiritual, da presença de deuses, de seres fabulosos, intocáveis, etéreos, em um mundo que não pode criar seus próprios milagres sem a intervenção divina.

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