Por  Nani Rubin de O Globo

Primeira instituição pública do gênero no país, a Biblioteca do Estado da Bahia, criada em 1811, sofreu todo tipo de revés: instalada num andar sobre a sacristia de uma igreja (a atual catedral Basílica São Salvador), ela contava, para a compra de livros, com uma subscrição anual de dez mil réis paga por notáveis. Com a míngua das contribuições, D. João VI autorizou a extração de uma loteria, por três anos, que garantisse a continuidade das atividades e ainda determinou que fossem enviados para lá todos os volumes em duplicata da Biblioteca Real, no Rio (à época, ainda de sua propriedade). O desabamento do telhado levou à transferência dos livros para um imóvel alugado; depois, para a Casa do Senado, e, mais tarde, para o prédio do Supremo Tribunal de Justiça. Deste, foi para o térreo do Palácio do Governo, num local, conta-se, exíguo. Uma crise política acabou atingindo literalmente o prédio. Bombardeado, teve parte do acervo de livros raros destruído; outra parte foi furtada.

Vista do interior da Biblioteca Nacional em seu antigo endereço, na Rua do Passeio, na Lapa / Foto: Divulgação

Vista do interior da Biblioteca Nacional em seu antigo endereço, na Rua do Passeio, na Lapa / Foto: Divulgação

A saga não para aí, mas só esse trecho já é suficiente para exemplificar um traço que parece permear o percurso das bibliotecas públicas do país: quase todas, criadas no século XIX, têm uma “história dramática”. O fator comum foi identificado por George Ermakoff, que pesquisou a história de 11 instituições públicas para escrever “Bibliotecas brasileiras”, volume de 300 páginas que acaba de ser publicado pela editora que leva o seu nome.

— Era drama atrás de drama — diz ele. — A Biblioteca Pública do Paraná, por exemplo, teve mais de dez domicílios. A cada mudança, perdia-se acervo, ou por roubo, ou pelo transporte malfeito. Pior: em cada administração, o governo autorizava pessoas a pegarem livros raros, que não eram devolvidos.

OBRA É UMA DEFESA DO PATRIMÔNIO NACIONAL

Os percursos das bibliotecas de Salvador e de Curitiba estão contados no livro, que também sofreu uma espécie de revés em sua realização.

— A ideia era fazer um livro de arte, mas tornou-se tão necessário falar de várias coisas, que o texto acabou ficando com 300 mil caracteres — conta Ermakoff.

O objetivo inicial, no entanto, não foi de todo ignorado. “Bibliotecas brasileiras” oferece ao leitor uma extensa pesquisa, mas é também um livro de arte, com fotos de profissionais como Cristiano Mascaro, Jaime Acioli e Fernando Bueno, e ainda registro de época que ajuda a ilustrar a história de cada instituição. No capítulo sobre a Biblioteca Nacional, por exemplo, há imagens da fachada e do interior do prédio na Rua do Passeio, na Lapa, em 1890, e da mudança dos livros (foram 1.132 viagens de caminhões de mudança) para a nova sede na Cinelândia, em 1910. Numa panorâmica de autoria de A. Ribeiro pode-se ver o prédio imponente ainda com o Morro do Castelo e seu casario colado atrás. Várias fotos, de autor desconhecido, mostram a construção do prédio; e outra, de Marc Ferrez, operários dando os últimos retoques no calçamento da rua.

A Biblioteca Nacional, fundada por D. João VI, foi selecionada para o livro por ser a maior do país e por sua história, que remonta ao terremoto de Lisboa. Ermakoff esclarece que “não existe uma lógica na escolha”.

— Cada uma delas comparece por uma razão específica — diz.

Do Rio, há ainda a Biblioteca de Obras Raras e Antigas do Mosteiro de São Bento, eleita, entre as quatro bibliotecas da casa, por um interesse particular no seu acervo, desde 1590 ocupando o mesmo local; a Acadêmica Lúcio de Mendonça (da ABL, de 1905), por ter recebido os acervos de Machado de Assis e Olavo Bilac, entre outros; o Real Gabinete Português de Leitura (1837), considerada a mais bonita de todas (e dificilmente haverá controvérsia nesse quesito); e ainda a moderna Biblioteca Parque Estadual (originada da Biblioteca Municipal criada no local em 1873). De São Paulo, estão lá a Mário de Andrade (1925), segunda em tamanho no país, com quatro milhões de livros armazenados numa torre de 22 andares, e a Brasiliana Guita e José Mindlin (2013), incluída pelo fato de estar repleta d e preciosidades, amealhadas por um colecionador particular e doada à Universidade de São Paulo. Por fim, além da maltratada, em outros tempos, Biblioteca Pública da Bahia, ele inclui no livro as bibliotecas públicas do Paraná (1859), cuja visitação diária é a maior do país; a do Amazonas (1870), representante da riqueza do ciclo da borracha, quando tudo era importado, inclusive a bela escadaria de ferro que leva ao segundo andar do prédio; e a do Rio Grande do Sul (1871), com colunas neoclássicas e ricos detalhes decorativos.

— O livro é fruto de um desejo de que as pessoas se conscientizem do patrimônio que temos no Brasil — diz Ermakoff, que reuniu, nos dois capítulos iniciais da cuidadosa edição bilíngue, um retrospecto resumido da história das bibliotecas no mundo e do Brasil.

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