Como bibliotecário, eu sou a primeira pessoa consultada pelos amigos e familiares quando eles têm alguma dúvida ou problema relacionado à livros.
Uma das questões mais interessantes e desafiantes que surgiram na minha vida de bibliotecário foi o que fazer com a enorme quantidade de livros do vovô Mario, depois que ele faleceu. Nada pode pesar mais para um herdeiro bibliotecário do que ter que lidar com a biblioteca de um ente querido.
Percorrer os livros de uma pessoa falecida é um pouco voyeurismo, um pouco invasivo. Quando eu fui avaliar a situação da biblioteca do vovô, eu senti como se estivesse olhando através de uma janela em sua vida. Os livros, e as escolhas que fazemos com eles, revelam muito sobre quem somos. E quando mortos, não podemos controlar quem vê o quê, nem em que ordem ou contexto. Vovô Mario não podia mais explicar por que tinha em sua coleção alguns títulos de mau gosto (Antologia do bom senso, Roberto Campos) ou de “baixo-calão” (catecismo do Carlos Zéfiro), deixando para mim as ponderações.
Por um lado, procurei respeitar o investimento intelectual e financeiro feito pelo meu avô colecionador. Aquela biblioteca que ele deixou pra trás provavelmente representa um de seus legados pessoais mais íntimos, e como tal, carrega junto uma imensa bagagem sentimental e emocional .
Por outro lado, vovó não queria mais aqueles livros em casa (traziam muitas lembranças), mas nenhuma ideia do que fazer com eles. A menos que o falecido seja uma espécie de José Mindlin, um colecionador voraz em termos de valor e procedência (não necessariamente conteúdo), a coleção tem pouco valor financeiro. Esse era o caso da biblioteca do vovô Mario.
Os poucos comerciantes de livros usados e donos de sebos de Copacabana e adjacências se tornaram bastante seletivos sobre o que eles querem revender, simplesmente porque o mercado de livros usados e sebos está evaporando desde que os filhos do vovô Mario passaram a comprar gadgets para os seus próprios filhos.
Ainda assim, apesar da ausência de valor comercial e insistência da vovó, me faltou forças para simplesmente descartar (jogar fora no lixo, literalmente) a maioria daqueles livros que fizeram parte da minha formação literária. Restou encaixotá-los e levá-los para a biblioteca pública, e assumir que eles encontrariam um abrigo.
Mas nós bibliotecários sabemos exatamente como essa história termina.
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Certa vez trabalhando em uma biblioteca universitária (não preciso dizer o nome, nem se era pública ou privada) fui convocado para ajudar na avaliação de algumas doações de livros que a universidade havia recebido, feitas pelas famílias de, justamente, dois professores respeitados que acabavam de falecer.
Após esta avaliação, foi concedido a nós bibliotecários a possibilidade de incorporar à coleção da universidade qualquer livro desejado e distribui-los entre as bibliotecas setoriais quando conveniente.
Qualquer livro que permaneceu após os três processos de triagem realizados foi destinado à biblioteca pública estadual, até que percebemos que enviar como doação os livros que haviam passado por extenso processo seletivo seria simplesmente passar pra frente o fardo do descarte para outros bibliotecários e fazer com que perdessem seu tempo. Então começamos a colocá-los em grandes sacos de lixo (daqueles de 100 litros, pretos, pra que ninguém descobrisse o que havia dentro) e atiramos fora.
Como assim? Bibliotecários jogando livros no lixo?
Sim, exatamente isso, e não me senti nem um pouco culpado. Isso foi bem na época que milhares de livros foram encontrados em um lixão no interior de Goiás, o que significava que a mídia e muitas pessoas cultas estavam prestando atenção nas bibliotecas para qualquer sinal anti-livro – daí a razão dos sacos pretos para minimizar os olhares dos X-9.
Compreendo perfeitamente as ansiedades de qualquer amante dos livros, mas a menos que você já tenha trabalhado em bibliotecas e sido esmagado pela massa absurda do texto em papel, você não sabe nada sobre o gerenciamento de quantidades maciças de livros.
O grupo de bibliotecários que participou da empreitada acabou sendo apelidado de esquadrão da morte. Um nome mórbido demais para identificar os carrascos que fizeram o que os outros não tiveram coragem de fazer: olhar um livro nos olhos (na capa) e sem piedade jogá-lo em um grande saco preto. Afinal, a história dos livros é a história da destruição dos livros.
O que eu estou tratando aqui é o número esmagador de livros indesejados – indesejados pelas bibliotecas, livreiros e leitores, como os do vovô Mario – que são doados ou despejados em bibliotecas. Naqueles sacos pretos foram descartadas livros que mesmo José Mindlin teria dificuldades de defender ou amar.
Como eu disse, eles foram avaliados três vezes, até que se chegasse ao ultimato. Ideias como a reciclagem dos livros ou a criação de prateleiras públicas do tipo “pegue-leve” são bacanas, mas quando confrontadas com volumes imensos de livros indesejados não são soluções realmente viáveis. Também é importante ressaltar que muitos dos títulos foram descartados por causa de sua condição, ou seja, encadernação solta, papel ácido desmoronando, fungos, etc. As bibliotecas não tem recursos e fundos suficientes para preservar os livros que elas já possuem, e menos ainda para aqueles que permaneceram guardados no escritório de alguém por décadas.
Dada a massa que podem acumular, desperdiçar tempo tentando encontrar novos lares para obras como, por exemplo, livros didáticos de matemática dos anos 1960 ou uma edição barata de um romance que praticamente cada biblioteca possui, é simplesmente um luxo que a maioria das bibliotecas não possui.
Um chavão no mundo bibliotecário é uma biblioteca oferecendo coleções inteiras como doação, mas exigindo que o interessado dê conta de toda a logística de transposição de uma biblioteca à outra. O que na maior parte das vezes não se concretiza, pois uma biblioteca disposta a receber uma doação de livros indesejados, geralmente não pode arcar com os custos de um frete.
Por essas e outras, o descarte deve permanecer como opção.
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A incapacidade de descartar até mesmo o livro mais inútil parece ser um problema humano universal. Nenhuma pessoa normal tem problemas em jogar fora pratos rachados, sapatos velhos, fitas cassete, plantas mortas e assim por diante. Mas os livros antigos, não importa se estiverem mofados, estraçalhados ou não fazer sentido intelectual algum, nunca recebem o tratamento que merecem.
Pergunte a qualquer bibliotecário quantas pessoas já tentaram doar suas adoráveis coleções de revistas Veja, ou aquela edição de Dom Casmurro que veio junto do jornal de domingo, enciclopédias Barsa completas, livros didáticos rabiscados, bíblias sagradas, e assim por diante, e você vai ter histórias épicas de doação inúteis que serviram apenas para dar dor de cabeça aos bibliotecários.
Gente, joguem fora o seu próprio lixo!
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Não tenho nenhuma relutância em ter outras pessoas, especialmente meus filhos, percorrendo meus livros nos anos futuros ou depois da minha morte. Recentemente tive argumentos com a minha avó por querer destruir e queimar cartas antigas e imagens antigas da família porque não queria que aquilo se tornasse um fardo para nós mais tarde. Os tios e tias, assim como eu, de bom grado iremos preservar aqueles documentos. Tenho certeza de que não vamos manter tudo, mas teremos a oportunidade de aprender mais sobre um pessoa que sofreu de Alzheimer (vovô Mario) e aprender coisas sobre a nossa história familiar e sobre a história do século passado. Eu vou manter as coisas que tenho interesse e elas vão me lembrar que eu compartilhei interesses com os meus pais e avós.
Mas sobretudo, distante de ser um fardo, a experiência emocionalmente pesada de lidar com a biblioteca dos mortos me faz crer que esse é um problema de ordem intelectual e física que podemos resolver em vida, e não passá-los para os filhos e netos. O que me agradaria seria dar-lhes os meus livros, enquanto eu ainda estiver vivo, para que eles possam apreciá-los e possamos discuti-los. Então, eles poderão dar-lhes a outras pessoas e compartilhar esse dom.
Provavelmente estou décadas distante do cenário da minha própria morte, mas por que não começar agora?
Tal como acontece com muitos que trilham esse caminho, eu tive um fetiche por livros e considerava a sua aquisição e exibição essencial. Uma das lembranças mais fortes de todas as minhas experiências com bibliotecas é a onipresença de estantes repletas de livros. Aos meus olhos, todas as casas que possuíam uma parede com livros garantia ao seu dono um status intelectual e por essa razão eu mantinha em meu quarto, como decoração, obras de Derrida, Foucault, Habermas et al. Quando eu e minha esposa bibliotecária casamos, nossas coleções colidiram, e o trabalho sujo do descarte prevaleceu para que o espaço do lar pudesse ser desfrutado decentemente.
A decisão foi ter um estoque mínimo de livros, respeitando a primeira lei de Ranganathan, com um acervo de crescimento zero: um livro só entra na estante se outro for descartado. E usufruir as bibliotecas públicas com o que elas fazem de melhor, livros emprestados gratuitamente, em vez de pedir-lhes que façam o meu trabalho sujo.
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Deixe-me concluir fazendo uma declaração simples: sou um bibliotecário que não tem afeição especial para o objeto conhecido como o livro. A ênfase aqui é no “objeto”, uma vez que como textos tenho grande afeição por incontáveis livros.
Um objeto não precisa ser precioso apenas porque é um livro. Ítalo Calvino, Umberto Eco e Ranganathan estão corretos no stricto sensu, mas não ao ponto a que nós bibliotecários muitas vezes carregamos esse tipo de argumento em defesa de nossas coleções e práticas arcanas.
Que ninguém leia isto achando que eu optei me tornar um idiota iletrado pois posso assegurar-vos que ainda leio enormes quantidades de texto. Minha leitura prazerosa acontece no Kindle, com o qual acompanho uma boa quantidade de textos e ensaios jornalísticos, além da escrita profissional na minha área, tanto em revistas como blogs. Ainda gosto de receber livros como presente de natal, eles continuam ganhando espaço na estante, embora eu ainda não tenha lido os livros do natal de 2009.
Eu raramente, ou nunca, jogo fora livros que tenha adquirido pessoalmente, e em vez de vendê-los, simplesmente ofereço de bom grado aos amigos e bibliotecas públicas que expressam interesse no título.
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Todos os livros não são qualitativamente iguais e nós bibliotecários temos de tomar decisões de acordo com esse raciocínio. Obviamente, existe também um distinto elemento quantitativo. Mas precisamos ser cautelosos com o argumento qualitativo, pois diferentes pessoas buscam tratamentos distintos que não têm nada a ver com critérios objetivos de qualidade.
Minha opinião é que a coleta de livros é um princípio coletivo das bibliotecas e consequentemente têm a obrigação de gerir os livros que caem em sua possessão. Isso começa com uma política de coleções clara, um documento que deve permitir que a biblioteca rejeite uma doação antes mesmo de ela chegar.
Embora eu não vá derramar lágrimas sobre livros em lixeiras, não importa quem me achar insensível, eu lamento profundamente a abdicação coletiva deste papel.
* livremente baseado no texto original Why I no longer collect books de Dale Askey