RIO – No mês passado o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) determinou, por meio de uma Resolução (nº 175), que todos os cartórios de Registro Civil do país devem converter a união estável homoafetiva em casamento civil, sem a necessidade de enviar o pedido ao Poder Judiciário. Com essa decisão, milhares de casais brasileiros poderão legalizar juridicamente suas uniões. Em 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) já havia reconhecido a união estável entre os homossexuais.

Embora as decisões no âmbito do judiciário representem um avanço significativo no que diz respeito à orientação sexual e identidade de gênero, nos campos político e social a luta está longe do fim. No legislativo nacional, por exemplo, até recentemente poucos legisladores se comprometiam com a causa. O panorama começou a mudar com a chegada de Jean Wyllys (PSOL/RJ) à Câmara dos Deputados. Wyllys fez aumentar o tom das discussões com uma defesa franca e direta da causa. Homossexual declarado, o deputado tem assumido a luta pelo reconhecimento dos direitos relativos aos homossexuais e outra minorias como algo pessoal.

No último mês Wyllys veio ao Rio para participar do Seminário de Identidade e Gênero, organizado pela Pró-reitoria de Pessoal da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), ocasião na qual concedeu essa entrevista exclusiva à Revista Biblioo. Falou, entre outras coisas, sobre a diferenciação entre identidade de gênero e orientação sexual; sobre os usos positivos e negativos da internet na luta pelo reconhecimento dos direitos, denunciando, por fim, a falta de equipamentos culturais: “Eu acho que os poderes públicos, nos três entes da federação, têm que financiar essas políticas de educação e cultura”.

Chico de Paula: Jean, durante a palestra você falou de “usos” e “abusos” da expressão homofobia. O que você quis dizer?
Jean Wyllys: Eu falei que o termo homofobia tem sido objeto de usos e abusos. Uso: nunca se falou tanto em homofobia como nos últimos tempos e abusos porque há pessoas que não gostam de admitir que a homofobia tenha diferentes expressões. A homofobia pode se expressar na violência dura – nós chamamos de “violência dura”: a agressão física, a lesão corporal, o assassinato. Mas a homofobia pode se expressar na injúria, na calunia, na difamação. Pode se expressar no arremedo, no chiste, na caricatura coletiva. Ela pode se expressar nas piadas de mau gosto, risos de canto de boca. Ela pode se expressar na negação de direitos. Ela pode se expressar de diversas maneiras. Então as pessoas têm abusado do termo na medida em que não querem admitir que a homofobia… Aquilo que é a sua expressão social… Isso é um abuso.

C. P.: Você também traçou uma diferença entre identidade de gênero e orientação sexual. Você poderia, brevemente, fazer essa diferenciação?
J. W.: Brevemente é uma tarefa difícil [risos]. Mas identidade de gênero tem a ver com a expressão de si; a maneira como você se percebe e se coloca no mundo. E essa maneira como você se percebe e se coloca no mundo, nem sempre está de acordo com o sexo biológico, que a natureza lhe deu. Pode ser que você venha com o sexo biológico masculino, mas você se perceba como mulher, se coloque no mundo como mulher, goste das coisas que a sociedade designou para as mulheres ou que a sociedade diz que é própria das mulheres. Pode ser que isso aconteça. Quando isso acontece, estamos diante de um caso de uma pessoa transgênero, ou seja, uma pessoa cuja percepção de si, a maneira como se coloca no mundo, não está de acordo com o sexo. Isso é identidade de gênero. No meu caso, por exemplo, minha identidade de gênero é masculina. Ou seja, a maneira como eu me percebo e me coloco no mundo está de acordo com o sexo biológico, o sexo que a natureza me deu e com o papel que a sociedade impõe a esse sexo. Então minha identidade de gênero é masculina, mas minha orientação é homossexual, por que o meu objeto de desejo é alguém do mesmo sexo. Ou seja, a orientação sexual tem a ver para onde a gente orienta o nosso desejo e o nosso afeto. Claro que essa orientação não é uma coisa simples, não parte só da vontade. Orientação é uma coisa complexa, tecida na relação íntima do sujeito consigo mesmo, claro. Tem a ver com… A orientação sexual tem a ver com um desejo, com um afeto que se expressa muito cedo em nossa vida e que é um diálogo entre natureza e cultura. Quer dizer, a maneira como você dirige para onde vai o seu afeto.

C. P.: Qual o papel da internet em geral e das redes sociais em particular em relação a esses temas?
J. W.: Têm um papel super relevante. Eu acho que nunca se denunciou tanto o crime homofóbico, nunca se tirou tanto da sombra a homofobia, que antes não era noticiada pela grande mídia. As redes permitiram isso, a internet permitiu isso: que as pessoas denunciassem mais, que as pessoas se articulassem em rede e se organizassem politicamente para enfrentar a homofobia. Então a internet tem um papel relevante. Agora, claro, como tudo que tem esse papel relevante, que é positivo, mas tem um aspecto negativo que é o aspecto do anonimato, das ameaças de morte, das articulações também para o mal, digamos assim; as articulações das redes fundamentalistas e nazistas, enfim.

C. P.: Nossa publicação é voltada para os profissionais da informação: bibliotecários, arquivistas e museólogos. Na sua palestra você falou sobre a falta de equipamentos culturais. Você enxerga a falta de bibliotecas, de museus, de teatros como um empecilho para o amadurecimento democrático sobre essas questões?
J. W.: Totalmente. Totalmente. Eu acho que, como diz Castro Alves, “livros a mão cheia, livros a mão cheia, manda o povo pensar”. Livros, ipads a mão cheia, computadores a mão cheia… Quer dizer, a gente precisa dar acesso à informação. As bibliotecas são um equipamento de educação e cultura fundamentais para a construção da vida com pensamento. Eu acho que os poderes públicos, nos três entes da federação, têm que financiar essas políticas de educação e cultura. Instalar bibliotecas, o acesso a livros… A biblioteca não se limitar a emprestar livros, mas também realizar eventos, seminários, palestras. Para que as pessoas, além de acessar o livro, acessem os autores, o pensamento dos autores. Isso é fundamental.

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