“Nenhum céu estrangeiro a me conservar, nenhuma asa de fora protegeu meu rosto. Fico como testemunha do comum, sobrevivente daquele tempo, daquele lugar”. Essas palavras nasceram das mãos de Anna Akhmatova, uma das mais importantes poetisas russas. Anna ousou escrever poesia em um tempo dominado pelo terror virulento de Joseph Stalin, mais um desses sujeitos loucos que, vez por outra na história da humanidade, incorporam o papel de líderes e detonam sem dó e nem piedade toda uma nação.

Foi um momento muito difícil para os russos e que deixou inúmeras sequelas. Forçada ao silêncio e à exclusão, Anna continuou expressando em palavras o sentimento de milhares de pessoas que tiveram seus direitos castrados, pagando o preço do ódio ditatorial de Stalin com a vida de familiares ou com a própria. E é partindo desse universo de dor e sofrimento que surge “Jardim de inverno” (original Winter garden, tradução de Sylvio Deutsch, editora Novo Conceito, 2013, págs. 416), da escritora norte-americana Kristin Hannah.

A história inicia com o drama das irmãs Meredith e Nina Whitson que, ainda na infância, precisam lidar com a frieza e desprezo da mãe, uma russa de nome Anya. A mulher é distante, não fala com as filhas, não as toca e muito menos expressa qualquer gesto de carinho. Todo o afeto das meninas é compartilhado com o pai, um homem amável que faz de tudo para que as filhas se sintam amadas e tentem compreender a ausência-presente da mãe. O leitor se compadece de imediato, buscando a peça-chave que possa esclarecer tamanha falta de sensibilidade oriunda da figura materna.

Crescendo dentro desse ambiente hostil, as irmãs assumem personalidades completamente diferentes. Meredith é centrada, racional, com forte senso de responsabilidade e dever, sempre vivendo em função dos outros, evitando confrontos diretos e impondo a si mesma uma extenuante sobrecarga de trabalho. Meredith é como a raiz de uma árvore fincada no solo, sem expectativas ou anseios pessoais. Ela é responsável pelos negócios da família, cuidando da casa, das filhas, do marido e dos pais. A caçula Nina é fotojornalista e trabalha viajando o mundo. Ela é livre, leve, sem senso de responsabilidade ou compromisso, e vive registrando zonas de guerra, procurando estar sempre dentro do olho do furacão. Nina é a personificação de um pássaro cigano, machucado demais para ficar e enfrentar os problemas que tem em casa.

Em um dado momento, o pai das irmãs adoece e fica em estado terminal. No leito de morte, ele suplica às filhas que cuidem e conheçam a mãe, até então uma completa estranha para ambas. Essa é a alavanca puxada por Kristin Hannah para envolver o leitor em um drama longo, sensível e cheio de dores, reforçando o cenário de sacrifícios e perdas que muitas pessoas são capazes de enfrentar. As personagens Meredith e Nina precisam lidar com a morte de sua única referência de carinho familiar e procurar adentrar na misteriosa vida de Anya, a “mãe-túmulo”.

A obra é bem construída, com situações conectadas e coerentes. No decorrer das páginas, o leitor vai se surpreender com “uma história dentro de uma história”, pois há muitos segredos que a russa Anya precisa enfrentar. Ela costumava ter contato com as filhas apenas na calada da noite, com as luzes apagadas e narrando um conto de fadas. E é justamente nesse conto de fadas que as duas irmãs descobrem a chave de todo o mistério que envolve a mãe.

Algumas pistas são espalhadas no seguimento dos acontecimentos, mas não é tarefa fácil localizar. É preciso concentrar a atenção nos detalhes, em cada palavra ou contexto, como o fato da mãe cozinhar e armazenar comida suficiente para alimentar um batalhão, ou ainda passar horas e horas sentada em frente a um jardim construído por ela, mesmo nas horas mais perversas do inverno. A propósito, a mãe russa sempre se deprime bastante no inverno, de forma exasperada e descomunal.

São 416 páginas cativantes, onde a angústia de três mulheres que sofrem com as lacunas deixadas pelo silêncio se liquefaz na busca pelo conhecimento, pela descoberta da identidade além da máscara imposta pelas falsas emoções. Por toda a obra, a escolha de fragmentos dos poemas de Anna Akhmatova não foi à toa. Afinal de contas, carregar as dores da própria vida é como atravessar uma ponte em vias de desabar; é doloroso, difícil, mas não há como escapar. Não é exagero dizer que, ao lado das páginas de Jardim de inverno, aprendi que nem mesmo a solidão vem sozinha.

Outro detalhe interessante vem por conta da editora Novo Conceito, que aposta em novas formas de interação com o leitor, oferecendo material de divulgação de qualidade e uma espécie de brinde – que eu vou intitular de “adereços sentimentais”. No caso de Jardim de inverno, o leitor recebe um lenço pequeno para comunicar a temática do livro, acompanhado de um lindo marcador de páginas. Uma boa aposta de divulgação e maior interação, sem dúvidas.

O livro da ex-advogada Kristin Hannah é repleto de emoções e recomeços, e tem forte chance de ir parar nas telonas. Caso isso aconteça, será muito bom ouvir Sergei Rachmaninoff e sua belíssima “Sinfonia número 2, Op. 27” entre as faixas da trilha sonora. Enquanto esse dia não chega, a leitura vai bastando.

Mara Vanessa Torres - Jardim de Inverno - imagem2Título: Jardim de inverno

Autor: Kristin Hannah

Editora: Novo Conceito

Categoria: Literatura Estrangeira / Romance

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