Intervenção: palavra-grito ouvida nas ruas e redes sociais. Mais um golpe na razão. As forças convocadas são um indicativo da necessidade de mais informação, algo possível a partir de outra intervenção: a literária. Tomada de alegria e alívio ao ler tal proposta exposta nas ruas, penso numa intervenção literária negra, que já existe!

Quantos já sabem e sentem os efeitos desta intervenção comandada pela força de mulheres e homens negros dedicados às diversas tarefas imprescindíveis para a produção literária? As narrativas impressas e vividas no curso deste movimento experimentam o desconhecimento que obscurece um tempo marcado pelo excesso de informações.

Quando o assunto é literatura, notas e notícias permanecem ignoradas pelo grande público. Em se tratando das informações sobre fatos e pessoas que configuram a “intervenção literária negra” em curso, há desconhecimento até entre o público sintonizado com a literatura. Em função dessas constatações, para que se amplie o conhecimento a intervenção em questão, convém resgatar e por em circulação alguns fatos históricos e notícias recentes coletadas na mídia.

Elejo como ponto de partida a abordagem do prêmio APCA 2017, tradicional premiação dos críticos de São Paulo, que tem algumas categorias destinadas à produção literária. A lista de premiados foi anunciada em dezembro e demarca um momento muito especial para a visibilidade e reconhecimento da produção literária negra. Entre os premiados estão o livro de poesias “Dia bonito pra chover”, de Lívia Natália e o livro infantil “Calu: uma menina cheia de histórias”, de Luciana Palmeira e Cassia Vale, ambos publicados pela editora Malê. Referência da literatura negro-brasileira, Lima Barreto está incluído na lista por ser o tema da melhor biografia do ano, assinada por Lilian Schwarcz.

Escritora Lívia Natália no lançamento do seu livro de poesias “Dia bonito pra chover”. Foto: divulgação

A listagem é potente no terreno da representatividade configurada com a presença de Lima Barreto – autor biografado, Lívia Natália e Cassia Vale – autoras, Maria Chantal – ilustradora, Vagner Amaro – editor da Malê. A edição conta com apanhando dos criadores negros em ação na literatura brasileira em diferentes períodos, aos quais se deve um segmento literário cada vez mais expressivo em quantidade e qualidade.

O aspecto qualitativo é algo definitivo nas escolhas da crítica e, no caso da Editora Malê é uma marca atestada em publicações como “Dia bonito pra chover” e “Calu”. Lançada em 2016, a editora chama atenção também pelo aspecto quantitativo, pois suas publicações consolidam fazeres negros em diferentes áreas, ampliando uma ocupação literária negra iniciada há muito no cenário brasileiro, que tem como realidade a maioria branca e masculina na autoria, editoria e ilustração.

Capa do livro “Calu: uma menina cheia de histórias”, de Luciana Palmeira e Cassia Vale. Foto: divulgação

No projeto de “Dia bonito pra chover”, a editoria negra de Vagner Amaro e a criação poética de Lívia Natália fizeram surgir um livro de poesia posto em destaque entre as obras brasileiras do gênero, cativando uma rara premiação da poesia de autoria negra feminina fora das categorias africana, afro-brasileira e negro-brasileira. Outro destaque acontece na categoria infantil, que teve como vencedora a obra “Calu”, livro infantil de Luciana Palmeira e Cassia Vale.

Educadora e atriz conhecida por sua atuação na cena negra, Cassia experimenta a autorepresentação nesta parceria que faz surgir a pequena Calu, uma protagonista negra, de grande valor para a representatividade e para a visibilidade da memória e história compartilhadas por tantas comunidades marcadas pela rica herança africana. A narrativa se completa, e enriquece, com o traço da angolana Maria Chantal, mais um nome no rol das boas ilustradoras negras que colaboram com a riqueza das publicações.

A conquista dos prêmios indica conquista de espaços. Pensando nisso, nos deslocamos da festa de 2018, para o século XIX, onde tudo começou. Nos ares escravagistas da época, sujeitos como Machado de Assis, Lima Barreto e Cruz e Souza, romperam a condição de objeto na produção literária brasileira, ou de seres invisíveis nela, e fizeram da autoria negra um fato. No entanto, um século depois, soubemos que a história não era bem assim. O espaço feminino estava assegurado, embora invisibilizado pela narrativa histórica, pois antes dos autores reconhecidos pela historiografia como precursores, a professora negra maranhense Maria Firmina dos Reis já havia publicado seu romance Úrsula, em 1859.

Apagado pela história, o feito de Maria Firmina veio a público no século XX quando o historiador paraibano Horácio de Almeida garimpou sua obra em um sebo carioca. Redescoberta, a obra comprova que o primeiro romance brasileiro teve autoria feminina negra e desafiou o contexto histórico da época com palavras de mulher crítica ao sistema escravista.

“Úrsula”, de Maria Firmina dos Reis. Foto: divulgação

De grande valor para a história da literatura brasileira e da produção literária negra, o romance Úrsula foi relançado pela PUC Minas em 2017, que distribuído pela Editora Malê, acrescenta mais um título ao conjunto de obras publicadas pela editora carioca que chegou ao mercado para sustentar a proposta de afirmação e visibilidade das diversas vertentes trilhadas pelas escritas negras e frequentemente reunidas em publicações coletivas e independentes, como os Cadernos Negros lançados em 1978.

Ao lado de editoras pioneiras como a Mazza, Pallas e Nandyala, a Malê ampliou a diversidade do mercado editorial brasileiro, publicando autores e obras que evidenciam a negrura. Sua proposta resgata e cria memória da produção literária negra, aglutinando obras reeditadas, lançamentos, conhecidos e novos escritores, experimentação de novas tendências – como o Afrofuturismo, o Slam, divulgação de textos acadêmicos, narrativas infantis e outras possibilidades de escritas que têm merecido apreço de leitores e apreciação favorável de especialistas.

As evidências apontam um quadro mais favorável para as escritas negras e o mesmo é consequência da mobilização coletiva da autoria negra articulada a partir da metade do século XX. Os passos isolados vindos de longe, conduziram a encontros e promoveram um aquilombamento necessário à resistência do fazer literário negro que, a despeito das restrições de editoras e condições desfavoráveis para circulação, têm gerado autores e obras marcadas por uma noção de brasilidade elaborada a partir do devir negro pela história brasileira, trazendo em si dissonâncias formais e discursivas nem sempre recebidas com festa.

A mudança das condições desfavoráveis acontece a passos lentos, passinhos nem um pouco diminutivos, criadores do ritmo dos saraus e slams que sacodem padrões, renovando e dando continuidade à enunciação. Como diz o jargão da juventude, as continuidades seguem o baile. E a pequena representatividade negra na premiação literária da APCA indica que o ritmo não mudou no setor literário, área em que a quantidade de autores, ilustradores, editores e outros profissionais negros não reflete os 54% da população que se declara negra.

Bibliotecário e editor Vagner Amaro. Foto: L. Landau / El País Brasil

No entanto, algo de salutar a ser destacado é a resistência atestada na persistência daqueles que, como o pequeno grupo premiado, segue criando expressão literária negra. O tom festivo desta história de premiação reside no reconhecimento dos efeitos de uma resistência marcada pelo aprimoramento resultante da ocupação de espaços de formação e de lugares sociais nos quais a população negra esteve ausente por muitos séculos.

A despeito dos números baixos, a literatura é um desses espaços em que se evidencia não só o discurso da população negra que ingressou nas universidades, mas o modo como ecoam entre jovens com diferentes perfis de escolarização as reflexões teóricas veiculadas por sujeitos negros que fizeram da cultura um agente transformador, circulando referências importantes para afirmação de identidades negras afeitas a reflexões projetadas em escritas diversas.

O tempo mostra que em meio aos velhos ranços, novas histórias não param de surgir, algumas delas, fora da ficção. Algumas referências em ação deflagraram décadas de fortalecimento das discussões e ações de cunho identitário e racial, tudo isso no bojo de um período de maior ênfase à equidade racial responsável por um esboço de igualdade de direitos ainda longe do ideal.

A passagem de Vagner Amaro/Malê, Livia Natália, Cassia Vale e Maria Chantal pela cena da premiação é um episódio que aviva as pegadas históricas dos precursores da história da literatura negro-brasileira e aponta os caminhos por onde seguem atores ativos na construção da negrura aderida ao texto e oriunda das periferias de um universo literário brasileiro que se transforma a partir da ação dos corpos negros em disputa por espaço no centro da cena literária.

Conceição Evaristo, uma das escritoras mais proeminentes da literatura negra no Brasil na atualidade. Foto: divulgação

Traços e “vozes mulheres”, “negroesias”, múltiplas escrevivências e narrativas que atravessam e desafiam os tempos, premiadas em 04 de junho de 2018. A dimensão desta noite fica ainda mais especial por acontecer quando a comunidade negra pleiteia a ocupação da cadeira número 7 da ABL, outrora ocupada por Castro Alves, por Conceição Evaristo.

A “intervenção literária negra” segue em festa e luta, apostando na entrada de uma mulher negra na elitista academia, cujos membros verbalizam um incômodo historicamente atrelado à produção literária negra e flagrado nos versos de Evaristo: “nossa escrevivência não pode ser lida como história de ninar os da casa-grande, e sim para incomodá-los em seus sonos injustos”.

Comentários

Comentários