Por Anna Beatriz Anjos da Revista Fórum

HQs não são protagonizados apenas por figuras masculinas: há diversas tramas centradas em personagens femininas, criadas tanto por quadrinistas mulheres, como homens. Este é o tema de estudo da pesquisadora Ediliane de Oliveira Boff em sua tese de doutorado

Quando pensamos em histórias em quadrinhos, logo nos vêm à cabeça os grandes super-heróis mais famosos: Batman, Superman, Homem Aranha, Gladiador. Todos homens, musculosos e protagonistas das tramas. Quando uma mulher aparece, está quase sempre na condição de “mocinha” que precisa ser salva pela figura máscula, tão bondosa e forte. É sempre assim, certo?

Errado. Há sim quadrinistas que tentem romper com os estereótipos ligados às representações femininas. Este foi o objeto de estudo da publicitária Ediliane de Oliveira Boff em sua tese de doutorado, aprovada pela Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP). “De Maria a Madalena: representações femininas nas histórias em quadrinhos” aborda a forma com que o feminino aparece em diversas obras, tanto ao redor do mundo, como no Brasil.

Além das representações da mulher em HQs, Boff estudou também seus autores. É possível um artista homem combater o machismo em seus quadrinhos, ainda que não seja o principal alvo de opressão da sociedade patriarcal? Segundo a pesquisadora, a resposta é positiva, “porque nem todas as mulheres estão preocupadas ou interessadas em discutir e combater o machismo. E nem todas as mulheres têm condições sociais e psíquicas de discutir e combater o machismo”. Confira, a seguir, a entrevista na íntegra:

Fórum – Como surgiu seu envolvimento com a temática da representação feminina nos quadrinhos? Desde quando a estuda? Por que decidiu focar sua tese de doutorado nesse campo específico?

Ediliane de Oliveira Boff – Meu interesse nos quadrinhos é anterior ao meu interesse em estudar as representações femininas nessas narrativas. Como tema de investigação comecei a me interessar pelas narrativas gráficas quando tive que fazer minha monografia de final de curso de graduação em comunicação, na UNIJUÍ, no Rio Grande do Sul. Eu sabia que gostaria de pesquisar sobre a relação entre HQs e identidades, mas não sabia especificamente de qual obra tratar naquele momento. Então, meu orientador na ocasião, o professor Paulo Ernesto Scortegagna, sugeriu que eu tratasse do personagem Radicci, de Iotti – uma caricatura do descendente de imigrantes italianos no Rio Grande do Sul. Acabei gostando do tema e vi, posteriormente, que nos quadrinhos de Radicci a relação entre ele e sua esposa Genoveva era fundamental na constituição das histórias. A partir daí eu comecei a ficar mais atenta para a questão de gênero nessas narrativas. Depois, seguindo nessa área, pude ver como a representação feminina constituía um problema no campo dos quadrinhos, sendo que, apesar da existência de grandes personagens femininas que podem ser consideradas bastante transgressoras, muitas outras eram representações estereotipadas e que permaneceram por muito tempo como personagens secundárias e pouco relevantes nas histórias. O outro motivo para que eu fosse pesquisar o gênero nos quadrinhos foi a minha própria experiência como mulher e minhas inquietações e indignações em relação as posições sociais de meu gênero.

Luluzinha, criada por Marjorie Henderson Buell, em 1935 (Foto: Reprodução)

Luluzinha, criada por Marjorie Henderson Buell, em 1935 (Foto: Reprodução)

Fórum – Seu trabalho foi dividido em duas partes: a primeira abordou protagonistas femininas de quadrinhos idealizadas por artistas homens; já a segunda tratou de protagonistas femininas a partir das perspectivas das próprias mulheres. Quais as diferenças, em termos de representação do feminino, entre estes dois “grupos” que criou, para efeitos de estudo?

Boff – Como você disse, a divisão foi criada para efeito de estudo e essa é uma questão relevante. Fiz a divisão pois me interessava conhecer o contexto de produção dessas histórias. Uma história feminista ou uma história machista (apesar das críticas à oposição entre essas duas esferas existir, já que o machismo opera com a premissa fundamental de que as mulheres são inferiores e o feminismo opera com a premissa fundamental de que as mulheres não são inferiores) pode ser produzida por homens, mulheres e “gêneros mistos”. No entanto, a atmosfera social em que cada um está inserido é bastante diferente e, de uma maneira ou outra, influencia na produção.

É possível notar, por exemplo, uma maior preocupação em discutir as libertações e repressões sexuais das mulheres na produção das mulheres analisadas na tese. Também é possível constatar maior atuação política na questão do gênero, por parte dessas mulheres. Quanto a temáticas como amor, relacionamento, romantismo, consideradas tradicionalmente como assuntos femininos, é possível encontrá-las igualmente na produção de ambos os gêneros. É necessário enfatizar, contudo, que essa divisão entre produção feminina e produção masculina deve ser vista de maneira bastante crítica se pensarmos no mercado editorial de quadrinhos. Não faz nenhum sentido, por exemplo, agrupar um número x de mulheres para publicar quadrinhos em determinado dia da semana em um jornal, e agrupar um número x de homens para publicar quadrinhos em outro dia da semana no mesmo jornal, sem que se faça alguma relação entre gênero e temática, por exemplo. A segmentação significa, sim, a abertura de outro espaço de publicação, mas não significa necessariamente um rompimento com estruturas tradicionais e conservadoras que continuam demandando a manutenção de seus tradicionais lugares de poder.

Fórum – Em uma entrevista ao portal da USP, você disse que a simples presença de mulheres não basta para que o cenário masculinista da produção de quadrinhos seja mudado. Por quê? Poderia citar alguns exemplos?

Boff – Porque nem todas as mulheres estão preocupadas ou interessadas em discutir e combater o machismo. E nem todas as mulheres têm condições sociais e psíquicas de discutir e combater o machismo. E ainda há quem tire proveito dos modelos tradicionais de ver o gênero feminino e masculino. É possível encontrar no mundo dos quadrinhos artistas mulheres que reforçam (ou em algum momento reforçaram) estereótipos femininos como o da histeria e instabilidade emocional, como por exemplo algumas histórias de Mulheres Alteradas, de Maitena. E é possível encontrar histórias que questionam e debocham dos estereótipos femininos em relação à sexualidade etc, tais como as obras das quadrinistas Claire Bretécher, Aline Kominsky Crumb, Carol Galais entre muitas outras. Apesar das contradições existentes em cada história, é possível encontrar mulheres que defendem as estruturas tradicionais e mulheres que defendem o rompimento dessas estruturas. Se tivermos 90% de mulheres dispostas a manter as estruturas tradicionais nos quadrinhos (entre produtoras, consumidoras, editoras etc), é muito provável que haja a manutenção desse cenário.

Fórum – Algumas correntes de movimentos pregam que apenas os oprimidos podem falar plenamente sobre sua opressão e, assim, assumir o protagonismo da sua luta. Durante a sua pesquisa, isso se confirmou? Ou você encontrou artistas homens que, em seus quadrinhos, contestavam o machismo tanto quanto as mulheres?

Boff – Não acredito que apenas o oprimido possa e deva falar sobre a sua opressão. É preciso reconhecer, contudo, que não é a mesma coisa falar sendo oprimido e falar sendo opressor, ainda que um opressor consciente e dedicado a desfazer a opressão. Também é preciso reconhecer que é possível ser oprimido e opressor ao mesmo tempo. Minha pesquisa trouxe exemplos de muitos artistas homens que contestaram, de uma forma ou outra, o machismo. Muitos artistas homens possuem discursos claramente feministas. Contudo, esses artistas, a não ser que passem por uma transformação de gênero, como foi o caso de Laerte, não passarão pela experiência da opressão feminina, o que não significa dizer que eles não tenham passado por outras experiências opressoras e nem que o machismo também não possa oprimi-los. Os homens também são oprimidos pelo machismo, mas não da mesma forma como são oprimidas as mulheres. A opressão opera de maneira diferente em cada grupo e isso deve ser levado em conta.

Brenda Starr, criada em 1940 por Delia Messick – repórter que discutia sua posição enquanto mulher em seu universo de trabalho (Foto: Reprodução)

Brenda Starr, criada em 1940 por Delia Messick – repórter que discutia sua posição enquanto mulher em seu universo de trabalho (Foto: Reprodução)

Fórum – De que maneira o título da sua tese – “De Maria a Madalena” – se confirmou – ou não – no decorrer da sua pesquisa? Existe essa contraposição extrema de visões sobre a mulher, ou isso veio se modificando com o tempo?

Boff – A oposição entre dois estereótipos femininos – a virgem santa e a prostituta – existe. Também é verdade que essa oposição tem sido suavizada nas atuais criações de quadrinhos. E também é verdade que as figuras de Maria e de Madalena não são oposições como se fez crer. Entre Maria e Madalena e entre outras oposições há sempre uma infinidade de outras manifestações, e, nesse caso, sempre há a dúvida de se Maria e Madalena constituem oposições de fato.

Fórum – Você consegue destacar alguns trabalhos, ou mesmo artistas, que inovaram na representação do feminino nos quadrinhos? Há alguns que podem ser chamados de revolucionários? Por quê – e você poderia contextualizá-los, por favor?

Boff – A revolução não é um movimento individual, portanto não acredito em um artista que tenha revolucionado. Há, é verdade, artistas que possuem uma espécie de ímpeto revolucionário ou vontade de mudar as coisas ou ainda outra visão das coisas, mas poucos empregaram esse espírito em uma crítica agressiva ao paternalismo e a condição de pobreza das mulheres, por exemplo.

Já se considerarmos a inovação, podemos citar várias personagens e artistas pioneiras. A Mulher-Maravilha, por exemplo, criação de William Moulton Marston, publicada em 1941, constituiu uma inovação, já que é uma das grandes heroínas de quadrinhos, com toda a sua força representativa. Brenda Starr, criada em 1940 por Delia Messick, a repórter que questionava sua posição de gênero em seu universo laboral, também inovou no tema, já que apresentava a personagem feminina a partir de uma profissão e não como dona de casa ou esposa/mãe, como era comum nos quadrinhos. A própria Luluzinha, criada por Marjorie Henderson Buell, em 1935, figura infantil que também deu a sua contribuição com a discussão de gênero. Personagens que saiam dos estereótipos “feminino cor-de-rosa” disseminados pelas Historietas Sentimentales na Espanha, por exemplo, tais como Esther (ainda que mantendo alguns preceitos românticos) também podem ser consideradas precursoras; as personagens femininas de Claire Bretécher, na França dos anos 70/80, e suas características andróginas, são igualmente sintomas das modificações sociais em relação ao gênero. Também podemos citar as personagens femininas do Underground (protagonistas criadas por Aline Kominsky, Trina Robbins), entre muitas outras que, em determinado momento, contribuíram com o rompimento de padrões hegemônicos do gênero feminino.

Fórum – Como é o cenário de quadrinistas mulheres no Brasil, hoje? E no mundo? O número vem aumentando?

Boff – Seguramente as quadrinistas ganham maior visibilidade hoje. No Brasil essas movimentações que pretendem por em evidencia o trabalho das mulheres é recente, mas tem ganhado força. Essa visibilidade é ainda bastante menor se considerarmos o número de artistas homens. Muitos eventos de quadrinhos continuam ignorando a presença feminina nos quadrinhos como protagonistas e autoras nesse cenário, por exemplo. E discutir o assunto gênero parece, ainda, um quase tabu. Mas é notável a abertura dos espaços para as publicações femininas de maneira geral. Em lugares como Estados Unidos e Japão essa produção já é bastante ampla.

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