Um discurso recorrente tomou conta da pauta jornalística da Globo (tv, rádio, jornais e internet) nas últimas semanas: artistas/grafiteiros são pichadores e, por consequência, “marginais”. É evidente que a abordagem não é feita assim de forma tão direta, mas está nas entrelinhas. É preciso diligência e atenção para perceber. É evidente, também, que a apropriação que estes veículos de comunicações fazem da palavra “pichadores” tem uma conotação absolutamente pejorativa: pichadores “são bandidos” e por conta disso “devem ser combatidos”. Uma pesquisa rápida em seus canais mostra isso claramente.

Print da página do Jornal O Globo com reportagem sobre o assunto. Foto: reprodução

A discussão ganhou folego quando o prefeito de São Paulo, João Dória, teve a brilhante ideia de apagar os grafites que ilustravam paredes e muros de áreas públicas de diversas regiões da capital paulista com o pretexto de “limpar a cidade”. Como prefeito e Globo parecem comungar de uma mesma ideia de mundo, a saída da emissora, e seus respectivos canais, foi lançar mão de um discurso criminalizante, recusando, como lhe é de praxe, aprofundar o assunto. Não se trata aqui absolutamente de discutir a legitimidade ou não deste histórico tipo de manifestação, tão comum no cenário urbano mundial. Não se trata, também, de dicotomizar a questão, colocando de um lado os artistas/grafiteiros e de outro os pichadores, mas problematizar o caráter reducionista e marginalizador impresso por estes veículos de comunicação ao debate.

Uma busca no site da CBN mostra bem o repertório discursivo sobre o tema nestes veículos. Foto: reprodução

Perseu Abramo, ao alertar sobre a manipulação da grande imprensa, destaca a “indução” como um dos padrões essenciais deste tipo de expediente tão comum na grande imprensa brasileira. Segundo ele, “o que torna a manipulação um fato essencial e característico da maioria da grande imprensa brasileira hoje é que a hábil combinação dos casos, dos momentos, das formas e dos graus de distorção da realidade submete, em geral, e em seu conjunto, a população à condição de excluída da possibilidade de ver e compreender a realidade real e a induza a consumir outra realidade, artificialmente inventada”.

É evidente que isso se dá de forma consciente e deliberada. Portanto, são coisas discutidas e decididas nas salas de chefias e redações e comungam com a ideologia não só dos proprietários dos veículos, mas de muitos de seus profissionais. Comungam, ainda, de uma visão de “cidade espetáculo”, feita para os de fora, excluindo aqueles que deveriam ser de fato seus detentores. Aos grafiteiros um certo prestígio, pois sua arte pode (mais não deve) ser facilmente apropriada pela ideologia dominante; aos pichadores a marginalidade, pois sua prática, pensada e executada para contestar e desagregar o sistema, não rende lucros.

“A piXação é uma escrita com um fôlego poético que vem do lugar menos esperado, justamente onde existe mais analfabetismo. É a letra sem a dureza da gramática. A escrita piXadora existe sob a tensão entre a ideia de ‘escrever para esclarecer’, como costumamos fazer no dia a dia, e a ideia das ‘letras que formam um enigma’, menos usual. É uma escrita libertadora nesse sentido, em que o significado é sacrificado em favor da forma. Para mim, o piXador não alveja só a sacralidade da propriedade privada quando piXa, mas também a da propriedade do sentido. É diferente do grafite, que é uma forma de expressão mais organizada e, por isso, mais aceita. Para o piXador, a letra não é só uma ferramenta, é sua vida de fato. Isso dá à prática uma potência criativa difícil de encontrar no mundo atual. É algo parecido com o cuidado dos copistas com as letras capitulares na Idade Média”, disse o professor da Faculdade de Educação da UERJ, Gustavo Coelho, em entrevista ao VozERio.

A GloboNews, a exemplo dos outros veículos da Globo, lançaram mão do mesmo discurso. Foto: reprodução

Tudo bem que estes veículos considerem e apresentem o grafite como arte. Acreditamos que eles são isso mesmo. O problema é se apropriar desta arte e coloca-la a serviço de um modelo de cidade que, como já frisamos, tende a ser excludente a quem não se enquadra a um padrão preestabelecido de civilização, ignorando todas as leituras que se possa fazer sobre este tipo de manifestação. Como bem ponderou o professor Gustavo Coelho: “será que a pichação é apenas uma atitude irresponsável?”. Para a grande mídia, especialmente aos veículos da Globo, não há dúvida de que sim. Para quem enxerga além, a pergunta precisa paira um pouco mais sobre sua cabeça antes de atirar a primeira pedra.

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