RIO – É comum se projetar a imagem de um escritor consagrado como um sujeito inacessível. Com Godofredo de Oliveira Neto não é assim. Encontramos o escritor catarinense, radicado no Rio de Janeiro, para essa entrevista em uma cena comum em seu cotidiano: batendo um papo com alunos e professores nos corredores da Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), onde este leciona há muitos anos. Nessa faculdade, em particular, Godofredo goza de uma estima invejável, tanto é assim que ao disputar a última eleição para Reitor da UFRJ, ele obteve ai em torno de 80% dos votos. A vida do escritor é assim: transita entre a escrita e entre sua militância política em favor da educação. Nesta entrevista Godô, como é conhecido entre os mais íntimos, fala de sua obra, de sua militância e de sua participação na Bienal do Livro do Rio de Janeiro.

Chico de Paula: Professor, eu queria começar perguntando sobre a sua obra literária. A gente nota na sua obra que tem um traço histórico muito importante, só que o senhor já viveu bastante tempo aqui no Rio de Janeiro, até mais do que o senhor viveu na sua terra natal que é Santa Catarina. Porque esse motivo de remontar a história da sua terra?

Godofredo de Oliveira Neto: Bem, eu acho que… Primeiro os meus livro, esses a que você se refere, menos do que histórico, eles são de extração histórica. Isso significa que a história entra como pano de fundo, mas não são livros históricos; eles não começam naquele período e acabam naquele período do passado. Ele dá assim um climatismo, mas não ganha tanta importância. E isso da questão da identidade nacional, que foi substituída do ponto de vista teórico e filosófico por uma ideia, uma noção de multiplicidade de identidades, eu não discordo exatamente disso, mas isso foi também o reflexo que veio na esteira de uma proposta de abolição ou diminuição nas fronteiras. E na verdade era uma questão me parece bastante clara de supremacia, quer dizer, dentro da ideia clássica de oprimido e opressor; não é outra coisa se não isso, porque na verdade o mais forte ganha na determinada fronteira. Então acho que a questão da identidade voltou com muita força, acho até que a questão da União Soviética… O medo que se tinha, o Estados Unidos principalmente, daquelas nações que ficaram ali décadas sob o império soviético quando ouve o estilhaçamento, medo de que elas voltassem a reclamar uma identidade e que lutassem por uma coincidência de fronteira geográfica e nação. Eu estava olhando as datas e é muito curioso essa questão da identidade múltipla; vai contra uma ideia de globalização, de esmaecimento entre as fronteiras dos países. Apesar de que é uma coisa que vai tudo assim junto… Então recorrer a Santa Catarina é porque minha terra faz movimentar o imaginário psicológico político dentro de mim com mais facilidade, mas também Santa Catarina é um espaço fundamental, me parece, no entendimento da nação brasileira, justamente nessa questão de identidade. Porque nós temos no Brasil, hoje, 45 milhões de pessoas descendentes de italianos e alemães, quer dizer, é uma coisa muito grande e você tem ali uns 2 milhões e pouco de japoneses, e uma coisa de 10 milhões de árabes e sírio-libaneses basicamente. Enfim, o Brasil é isso. E Santa Catarina tem uma historia, tem um momento difícil, quando a gente lembra que o Brasil lutou contra a Alemanha e com essa presença de muitos imigrantes, como esse cenário foi pouco explorado, porque é um desconforto, por parte assim da grande São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande, basicamente. Há um desconforto e isso foi meio abafado. Tanto é que pessoas, por exemplo, da tua geração, não sabem como foi a vida no Brasil durante a segunda guerra mundial, por exemplo. Era proibido falar em lugar público alemão e italiano. Imagina uma criança que fala com a mãe e com o pai; com a mãe principalmente que era com elas que eles eram alfabetizados naquela língua, e não poder… Ele aprendeu a música através da língua italiana. E sente também aquela sensação de “eu não posso falar”. Parece uma coisa vingativa. Então isso formatou um pouco da nacionalidade brasileira e da personalidade brasileira e é um assunto pouco explorado. Bom, então daí a eu aproveitar de um cenário pouco conhecido do Brasil foi um passo. E contribuiu também para o reentendimento da nação brasileira.

C. P.: Com relação à história como pano de fundo, como o senhor mesmo coloca. Neste sentido, o Bruxo do Contestado seria a sua obra máxima?

G. O. N.: Eu acho que acaba sendo, porque essa obra máxima não vem da gente; vem da crítica. Realmente é o livro que teve uma repercussão muito grande; trouxe também três momentos: a Guerra do Contestado, de [19]12 a [19]16, [19]39 a [19]45, a Segunda Guerra Mundial, e nos anos [19]70, o fim da ditadura. Essa questão do Contestado do cenário iluminado que é mais internacionalizado que Canudos, porque aconteceu em pleno período da Primeira Guerra Mundial. Algumas armas foram inclusive testadas naquele conflito. Armas que seriam utilizadas na [2ª] Guerra Mundial. Foi a primeira vez que se empregou aviões de guerra no Brasil. A guerra se deu ali, na fronteira mesmo com a Argentina. O Brasil deslocou 7 mil soldados para a região, e nunca se fala que a Argentina também fez – é óbvio, faz parte diplomacia – de quando um país desloca a tropa para a fronteira, outro país também descola, mas você não encontra isso, houve uma certa… Se agente trás pra frente a questão do Contestado, volto a falar dessa história da Segunda Guerra Mundial, da família Matarazzo, dessa condecoração fascista, que na época não tinha uma conotação, digamos, negativa; mas era um regime populista, de direita. Pra se ter ideia, a gente condecorou o maior industrial brasileiro da época. O segundo momento fala também dessa época, da Segunda Guerra Mundial, e dentro da ideia que se chama de narrador pós-moderno, ele vem até os dias atuais, no final do século XX, com a proposta de falar um pouco da questão ditadura, do exílio, e tangenciando a questão do Movimento dos Sem Terra. Essa questão da terra já apareceu, que é um problema dramático, essa questão da terra. Por conta da abolição da escravidão, Joaquim Nabuco [Abolicionista] propôs que cada escravo liberto levasse para casa um cavalo, um saco de semente e principalmente que recebesse um pedaço de terra grande o suficiente para ele se sustentar e sustentar sua família, inclusive até vender parte dessa produção no mercado informal, seria já o início de um crescimento interno. Essa lei perdeu no nosso Congresso. Essa questão se arrasta. Acho que tanto Canudos quanto Contestado, depois Caldeirão, no Ceará, são três movimentos semelhantes, que eu e meu colega Claudio Aguiar, que escreveu um livro sobre Caldeirão, chamamos de “Canconcal”: Canudos, Contestado e Caldeirão.

C. P.: Com relação as suas referências literárias, quem o senhor destacaria?

G. O. N.: Olha, eu comecei muito com a chamada literatura francesa. Minha paixão de ler era Flaubert [Gustave Flaubert, escritor francês do século XIX]. Era uma época que em criança isso era comum. Estudei em colégio Franciscano e era forte essa parte de literatura, línguas, ciência humanas. Flaubert era estudado como metonímia em de toda a literatura. Comecei muito cedo a ler, entre 13 e 14. Eu lia poeta, tipo Manoel Bandeira, [Carlos] Drummond [de Andrade], pessoas que chegavam a mim já… Machado [de Assis], que eu aprendi a conhecer já no ginásio. Eu chorava quando lia. Machado naturalmente marcou naquela geração. Mas a gente tinha ali também, por sorte, sorte de ler Cruz e Souza, que era um autor catarinense, que embora não fosse superestudado, mas era lembrado. Me lembro a primeira vez que foi lido o Emparedado; é uma coisa que até hoje eu leio e fico arrepiado, de chorar. Quer dizer, o poeta negro dizendo do mau de ser negro nesse país. E ele foi o único depois da abolição da escravidão que gritava aos quatro ventos que continuava o martírio. Isso foi um aprendizado muito grande. E ele, para qualquer crítico, mostrando a arte daquilo, de esfregar na cara das pessoas. Isso pra mim marcou muito por conta do racismo, exatamente num estado onde essa questão está posta sempre. É curioso porque quando se têm regiões onde se tem um forte racismo, você também tem uma oposição ao grupo racista. Isso às vezes é producente, pois cria uma resistência. Me lembro também que nos Estados Unidos vigorava aquela descriminação nos ônibus, banheiros; tinha que sentar em lugar diferente. Nós lutávamos contra isso. Aí começou um pouco com o Movimento Estudantil, contra os militares, reivindicatório.

C. P.: Paralelamente a sua vida literária, digamos assim, o senhor tem uma vida de militância, sobretudo na área da educação. Como o senhor descreve ou avalia essa sua militância?

G. O. N.: Eu penso que nunca consegui separar uma coisa da outra [a literatura da militância política], porque eu escrevi muito. Porque têm coisas que acontecem no movimento. Eu sempre prezei muito pela educação; acho que essa é a saída do país. A minha militância era sempre voltada para a educação. Só para a educação! Eu só trabalhei em áreas da educação, como a UFRJ. Isso dá uma canja pra gente; me da uma riqueza das contradições; a busca de uma argumentação que às vezes nem é verdadeira, mas que deve ser importante pro discurso. Você vai aprendendo ali na vida… O que era difícil pra mim. Você vê que é como um jogo, em que o cara vê que a bola saiu e diz: “não, não saiu”, mas saiu. Isso também existe na criação de um discurso. Isso pode até ser chamado de mentira. Se quiser enveredar por um viés literário, o caminho está pronto. Você vai criar um personagem; você vai entrar na pele dele, sentir como ele, você vai sair de si próprio. Esse jogo é um jogo que existe na criação literária.

C. P.: Essa experiência o senhor conseguiu aplicar na eleição disputada recentemente para reitor da UFRJ?

G. O. N.: Essa eleição ao meu modo de ver, não era uma diversão e sim um conserto uma arrumação. O resultado comprovou isso. Terminamos a eleição tecnicamente empatados. Mas damos todas as forças para administração atual. Sinto que existe uma preocupação com arrumação, com a criação do Centro de Coordenação. Propostas e demandas de Brasília/DF chegaram ao reitor. Vejo que há uma preocupação e também a consideração ao que foi levantado durante a eleição. Analisando o resultado, sem preconceitos e rancor, acredito que assim deve ser.

C. P.: Professor, o senhor estará presente na Bienal, em uma mesa com outros escritores. Qual é a sua avaliação de eventos como a Bienal? Eles têm contribuído para a democratização da leitura e do livro no Brasil?

G. O. N.: Para a democratização da leitura como um todo, acredito que sim. Mas da boa literatura entendo que não. Porque a questão comercial está presente. Mas reconheço o esforço para tentar uma sustentação maior da boa literatura e da cultura. A cultura pode ser popular, mas ela não precisa de uma construção, digamos, simples com chavões; ela tem que puxar o papel da literatura. Se ficar no nível geral você tem mais chances de vender. Não que o papel intelectual esteja acima. É como se fosse o papel do músico em uma orquestra sinfônica: ele tem que tocar o instrumento dele, mas não pode se sentir superior; tem um papel determinado que não é o do capricho; tem que questionar alguns pontos, mudar outros, desconstruir mitos. Essa visão crítica do pessoal universitário em geral, é esse o papel, sair para uma vertente crítica. Não pode esperar e imaginar que os outros pensem por ele. Então mesmo que a literatura se atente para a estética, mesmo assim ela mexe nos pilares; ela é revolucionária sempre, porque se ela mexe com critério de beleza ou estética, ela já é revolucionária. Porque o sistema tem isso.

C. P.: Professor, a Revista Biblioo agradece a sua participação nessa entrevista. Muito obrigado!

G. O. N.: Eu que agradeço. Acho a iniciativa muito importante e atualmente com essa sustentação através de outros meios como a internet, Google, Facebook é muito importante. O suporte técnico possibilitou uma rapidez na informação. Vocês estão de parabéns. Obrigado!

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