As bibliotecas comunitárias nascem de uma demanda de moradores de determinados territórios. Ao perceberem a dificuldade de acesso aos livros, principalmente para crianças e jovens nas regiões mais periféricas das cidades, se reúnem e começam a organizar um espaço de leitura, que a partir do interesse e colaboração das pessoas do entorno, se consolida como biblioteca comunitária. Hoje no Brasil esses espaços assumem a importante função de formação de leitores e de luta pela garantia dos direitos humanos.

As bibliotecas comunitárias que existem no nosso país vivem de histórias que os livros contam; os frequentadores segredam, desabafam, compartilham; surgem do contato de cada um deles com os livros; os mediadores de leitura apresentam aqueles que chegam a esses espaços; são dialogadas em trocas de experiência entre os mediadores em atividades de formação. São histórias de transformações individuais, coletivas e de conquistas em políticas públicas na área do livro, da leitura e da biblioteca, através da incidência nos âmbitos municipal, estadual e federal.

As ações permanentes de mediação de leitura vivificam os acervos dessas bibliotecas, fazendo com que os livros tenham uma circulação bastante ativa. Essa circulação acontece dentro dos espaços da biblioteca ou espaços externos, através do diálogo com as escolas, postos de saúde, associações, praças, ruas, pontos de ônibus ou mesmo em ações de porta em porta.

Algumas dessas ações recebem nomes diferentes, mas mesmo assim é possível reconhecer o objetivo comum de formação de leitores nessas proposições: parada do livro, ruas de leitura, praças de leitura, biblioteca na praça, biblioteca de porta em porta, leitura compartilhada, barrigas leitoras, invasão literária, clube dos fraldinhas, escondidinho de livros, barca dos livros, mala literária, piquenique literário, contos de terror, encontro com o escritor, saraus e muito mais.

Diante do contexto das bibliotecas comunitárias e das ações de mediação de leitura promovidas nesses espaços, muitas histórias de garantia de direitos podem ser contadas. Permitam-me ser a mediadora de algumas dessas histórias e, para tanto, irei falar de amor, ou como diria Michelle Petit (Os jovens e a leitura: uma nova perspectiva): “Para transmitir o amor pela leitura, e acima de tudo pela leitura de obras literárias, é necessário que se tenha experimentado esse amor”.

Primeira história de amor

Foram muitas leituras e reflexões até decidir qual o conto que seria apresentado àquele grupo de mulheres, todas moradoras do entorno da biblioteca. Para além das histórias que a mediadora mais gostava, tinha de ser algo que impactasse e mostrasse a possibilidade de outras realidades, diante das queixas de violência contra a mulher que vinha crescendo no bairro. Preparou o ambiente colocando alguns livros no centro do circulo, e algumas cartilhas sobre o assunto, cedidas pela delegacia da mulher, próximas à porta de saída.

Mesmo com todo o planejamento, por vezes o inusitado prepara o campo para o afetivo, e foi o que aconteceu. Tinha escolhido um poema contundente, e até ensaiado a forma de recitá-lo, mas quando as mulheres foram chegando aos poucos, e uma delas, mãe de um dos meninos que estavam todos os dias na biblioteca, fugindo das pancadas do pai, passou de cabeça baixa e com o cabelo mal escondendo o lado esquerdo do rosto, inchado e roxo, foi que ela decidiu mudar o texto que seria mediado.

Já estavam todas sentadas em roda, quando decidiu levantar-se e ir até a estante pegar um livro que falava de algo que em sua opinião, poderia fazer a diferença naquele momento. O conto era A moça tecelã, de Marina Colasanti. Após a leitura perguntou se alguém queria comentar, quase todas falaram e fizeram algumas associações com as suas vidas, o poder das escolhas pessoais, e a necessidade de tecer os seus próprios horizontes, menos uma senhora idosa, avó de duas meninas que iam de vez em quando à biblioteca.

Ao terminar a ação convidou quem quiser voltar na próxima semana e falou das cartilhas que estavam na mesinha perto da saída. Apenas aquela senhora, a avó que ficara calada, ao passar pela mesa, quase sem olhar, pegou displicentemente uma cartilha. Alguns dias depois, diante da ausência das meninas na biblioteca, perguntou às suas vizinhas se sabiam das meninas e da avó, elas lhe responderam que a mulher tinha ido embora com as duas netas sem deixar endereço, pois cansada de apanhar e ver as netas apanharem, do seu próprio filho, resolveu denunciá-lo e partir.

Um detalhe chamou a atenção da mediadora. Segundo as vizinhas, ao se despedir a mulher teria dito que partiria para tecer novos horizontes para ela e para as meninas. A partir disso, a roda de mulheres leitoras ganhou força e passou a acontecer todos os meses.

Segunda história de amor

O menino de três anos vai até a estante dos livros infantis bem ao seu alcance e pega um livro após o outro, olhando as capas como se investigasse o teor da história, até que finalmente escolhe um. Caminha até o irmão de 11 anos, portador de paralisia cerebral, que o olhava atento sentado na cadeira de rodas.

Segurando o livro, o pequeno então sobe em seu colo, pega o dedo indicador do irmão e passa sobre o título do livro, assim o faz também em todas as páginas, sempre olhando para o mais velho durante as pausas na leitura realizada com o dedinho, como quem espera uma reação, que vem em forma de sorriso no rosto de ambos. Ao final da leitura, o pequeno mediador desce do colo, coloca o livro de volta na estante e parte em busca de outro.

O irmão observando atento e sorrindo, espera a próxima leitura. Os dois garotos são netos da fundadora da biblioteca, que com seu exemplo de amor vem transmitindo para os netos o seu legado tão importante: o amor pela leitura. Essa pequena história pode nos trazer a presença viva do patrono da educação brasileira, o educador Paulo Freire (A importância do ato de ler): “Aprender a ler, a escrever, alfabetizar-se é, antes de tudo, aprender a ler o mundo, compreender o seu contexto, não pela manipulação mecânica de palavras, mas numa relação dinâmica que vincula linguagem e realidade”.

Terceira história de amor

A jovem entra na biblioteca ainda com a farda da escola, passeia os olhos pelos livros, e mais uma vez pega um dos exemplares de literatura fantástica do acervo. A mediadora, que vinha observando o interesse da garota nesse mesmo livro, ao longo de duas semanas, pergunta se ela não quer levar o livro para casa, a menina diz que não pode, pois a orientação religiosa da sua família não permite que ela leia aquele livro.

A mediadora então pergunta: se a família não permite, por que ela insiste em ler? A garota responde prontamente que aquelas poucas horas, em que ela está com aquele livro nas mãos, são as horas em que ela consegue sonhar.

Cúmplice, a mediadora reserva o livro para que a menina tenha a garantia de mais algumas horas de sonho na biblioteca. É desse sonho que nos fala Antonio Candido (O direito à literatura in vários escritos): “Assim como todos sonham todas as noites, ninguém é capaz de passar as vinte e quatro horas do dia sem alguns momentos de entrega ao universo fabulado.”

Uma aliança por amor

E foi a partir do sonho de um Brasil de leitores e de um novo retrato da leitura para o Brasil, que mais de 100 bibliotecas comunitárias, reunidas através do “Programa Prazer em Ler” na cidade de Salvador, no ano de 2015, fundaram a Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias, que traz no seu DNA o compromisso de crescer, articulando mais bibliotecas comunitárias, que venham integrar e fortalecer esse movimento de formação de leitores e de luta pela garantia do direito à leitura, ao livro, à literatura e à biblioteca.

Viva as Bibliotecas Comunitárias do Brasil!

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