Professor do Departamento de Ciência da Informação da Universidade Federal de Santa Catarina, Francisco das Chagas de Souza, vem levantando questões e debates na área de Biblioteconomia a respeito de temas como: Educação Bibliotecária, Política Profissional, Ética Profissional, entre outros. Autor de livros como “Biblioteconomia, Educação e Sociedade” e “O ensino da Biblioteconomia no contexto brasileiro: século XX”, Francisco das Chagas, conversou com a equipe da Revista Biblioo a respeito do atual modelo de organização profissional de Biblioteconomia e da proposta de uma nova legislação para a profissão de bibliotecário. Entre outras coisas falou sobre a Lei da Biblioteca Escolar (12.244/2010) e das dificuldades para a criação de bibliotecas públicas em Florianópolis.

Como o senhor avalia atualmente o modelo de organização profissional da Biblioteconomia?

Vamos partir da noção de que a expressão organização profissional significa o conjunto de estruturas criadas historicamente por um grupo que constrói uma identidade ocupacional. Que essa identidade se consolida através da semelhança das atividades que os membros desse grupo desenvolvem. Que essa semelhança vai continuamente se tornando complexa a ponto de produzir uma percepção de saber específico que forma a base de um discurso pelo qual vai se fixando uma linguagem comum reconhecível. Que esse saber específico é uma linguagem comum a esse grupo e que por sua particularidade vai se transformando em uma representação da realidade que vai sendo por ele constituída como uma posse ou domínio que ultrapassa o conhecimento do senso comum sobre o objeto de trabalho que constitui o foco central de seu trabalho. Que associado a esse foco de trabalho há um grupo de destinatários do conhecimento aplicado ou arte constituída como a expressão prática do saber específico construído pelo Grupo. Que esse público reconhece nesse grupo competências e habilidades próprias que tornam a produção que ele realiza aceita como capaz de oferecer as melhores, mais apropriadas e economicamente mais benéficas respostas às suas demandas. Que esse reconhecimento “outorga” a esse grupo precedência sobre outros grupos ou pessoas no momento em que os “usuários” de suas ações buscam “operadores” capazes de realizar as tarefas que já o distinguem, mesmo que haja nos grupos algum potencial de competência e habilidades na produção de soluções para as questões trazidas. Consideremos que esse movimento se dá historicamente na constituição dos grupos profissionais, que esse movimento é a pré-história de uma profissão. Se assim for, a história da profissão nasce a partir do momento em que o saber específico passa a ser codificado e fixado como registros em dados suportes, que leva à consolidação de canais pelos quais esse saber específico vai se transformando em uma teoria que “ordena” as ações do grupo; que lhe permite constituir-se como diferente de outros grupos; que detém a base inicial para que seus membros se aproximem e constituam a pessoa comum do grupo para em nome do grupo defender seus interesses em avançar e ocupar um espaço como profissão. Ora, para avançar como profissão, um grupo humano social, precisa ser constituído como uma pessoa “jurídica”, o que se dá a partir de uma convenção ou pacto de ação comum. Isto é feito com a criação de associação com fins de dar cara profissional ao grupo; é uma ação voluntária; se assume responsável pelas ações de formação contínua dos membros do grupo (escola em serviço), disseminação de conhecimento próprio (livros, revistas, blogs, redes sociais etc.), percepção e codificação não normativa de posturas (código de conduta) e, com maior alcance, constituição de estruturas de formação inicial (rede de escolas privadas, que podem vir a ser estatais ou mistas para a formação de técnicos, bacharéis), bem como estruturas que visam à construção acelerada de novos conhecimentos para ampliação do alcance da epistemologia construída pelo grupo que, como expressão intelectual, seja o fundamento da ação do grupo em um mundo vivido cada dia mais complexo, no qual não cabe mais apenas a aplicação do conhecimento que detém, vindo das práticas até então realizadas, mas que agrega uma ocupação adicional, isto é, a de investigar e criar conhecimento pela abstração das práticas ou para fomentar na sociedade o desejo, o interesse ou o sentimento da necessidade de novas respostas. Esse último estágio exige a constituição de subgrupos de pesquisas criados, instalados e instalando centros e institutos de pesquisas e fazendo a formação de mestres e doutores. Olhando para esse quadro acima desdobrado, que parece muito estruturalista, e, por isso, positivista, mas inevitável como modelo de organização que se dá historicamente, em todas as sociedades ditas civilizadas, e focando o ambiente social brasileiro, penso que o modelo de organização profissional da Biblioteconomia com o qual aqui convivemos demonstra lacunas. Essas lacunas têm, no mínimo, causas históricas, culturais, econômicas e sociais. Historicamente, nós povos brasileiros vimos subordinados a um domínio colonizador português, que sempre foi capaz de evitar a busca da autonomia política do brasileiro pela luta, pelo conflito aberto, pela disputa. Alguns movimentos que se constituíram no Brasil, sempre foram tão violentamente combatidos e tão sistematicamente conduzidos para a solução pelos “conchavos” de cúpula, pelos ajeitamentos, que o protagonismo da base social não se constitui claramente e, assim, é uma sociedade que vem se construindo pelo regime do “jeitinho”, que predomina em tudo o mais. Isso se tomado pelo viés cultural foi sendo agravado pelo fato de que o europeu ao chegar ao Brasil, mesmo reconhecendo a existência de populações nativas via nas pessoas que as compunham não muito mais que “mulas” de carga, em estágio pré-humano, porque não cristãs. Esse olhar, de certo modo, com benção da Igreja do Rei de Portugal, perpetua uma imagem forte de modo que ainda nos anos finais de década de 1930 Stefan Zweig, ao escrever seu famoso livro “Brasil: um país do futuro”, dirá que antes da chegada dos europeus não havia cultura neste recanto do mundo, o que suporia um desprezo de toda a cosmovisão e distintas manifestações de arte, agricultura, medicina etc. praticadas pelos habitantes nativos. Em que isso se modificou até hoje, quando a educação e pesquisa em boa parte dos domínios existentes em nossas universidades e centros de pesquisa buscam sua validação pela publicação ou referenciamento internacional? Não formamos matrizes epistemológicas originais; não temos conhecimentos originais, em domínios inéditos no resto do mundo. Nem mesmo na literatura ficcional conquistamos prêmios que são desejados em certos meios como expressão de civilidade do mundo escrito. Mal copiamos, mal imitamos, mal inovamos! Isso leva o olhar para o aspecto econômico! Como somos uma economia geradora de “commodities”, como nos sustentamos pela produção de matérias primas e pouquíssima transformação industrial, ainda não tivemos estímulos suficientemente fortes para sermos criativos em produzir um universo mais formalizado, tomando por isso a produção da escrita, do texto escrito, da imagética, da matemática, da lógica matemática, da filosofia, para dizer do que é básico. Tudo isso é decorrente da inexistente percepção da necessidade brasilindígena de ter necessidade de usar conhecimento como fonte gerativa de produção material original, circunstância que, culturalmente, confirma nossa semelhança com uma sociedade não autônoma e, assim, consumidora das soluções industriais estrangeiras. Por fim, o conjunto dessas causas leva à constituição dos perfis sociais que não dão uma síntese do povo brasileiro. Há uma multiplicação de povos brasileiros em constituição de várias sínteses produzidas a partir de muitas matrizes étnicas, culturais e religiosas que vêm sendo amalgamadas nos últimos séculos. Essas muitas sínteses se manifestam em muitas línguas e linguagens regionalizadas, em muitas matrizes religiosas, em muitas fontes e práticas de justiça, em muitas forças de fazer-se a política e exercer os poderes etc. Assim, as lacunas do modelo de organização profissional da Biblioteconomia, traduzem-se em: escolas, que ainda se aproximam muito de meras importações degradadas; associações profissionais, que ainda são espectros de ação coletiva dirigidas majoritariamente pela política da “apoliticidade”; entidade como o Conselho profissional, que é meramente a assimilação e realização de uma função do Estado, podendo ser mais bem cumprida pelo Ministério do Trabalho e Emprego, através da Delegacia do Trabalho; construção teórica descolada da realidade cotidiana da sociedade brasileira, por estar enviesada por objetos de pesquisa extraídos do universo gerador de demandas da informação científica e tecnológica e por uma “mélange” metodológica que pouco se reconhece filiada a escolas filosóficas, ao tomar metodologia de produção de conhecimento pelo que ele pouco é. Resumidamente, penso que o modelo de organização profissional da Biblioteconomia não está adequado às necessidades que os povos brasileiros têm de avançar mais rápido na resolução de suas defasagens históricas, culturais, econômicas e sociais, se é que esses povos têm a consciência de que têm tais defasagens. Pois, supostamente, é para a resolução dos problemas sociais que as profissões são constituídas e se constroem. E no caso do corpo bibliotecário brasileiro, imagino que ele precisa ter a consciência dessas dimensões da realidade e fazer muito mais que “conservar” o que está posto.

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