Em 2015, Salvador recebeu pela Unesco o título de Cidade da Música. O título tende a fortalecer a competitividade da cidade como destino turístico e a aumentar o interesse internacional para as práticas que a cidade desenvolve nesta área.  Quem já visitou Salvador sabe que o título é mais que merecido, pois, entre sambas de roda, escolas de samba, ijexás, músicas dos baianos que integram a geração MPB, músicas dos blocos afro surgidos na década de 1970, além do samba-reggae, do forró, do axé, do arroxa e tantas outras ramificações musicais ̶ que originaram bandas e figuras como o Baiana System, Xenia França, Diogo Moncorvo e Luedji Luna  ̶ , há em Salvador uma pluralidade e inventividade musical que faz da cidade uma “Nação de ritmos”, como na letra Cidade da  música, de Daniela Mercury.

Se na área da música o reconhecimento de Salvador parece consolidado, na área da Literatura o cenário era um tanto desolador, pois, devido ao fechamento para reformas do Centro de Convenções da Cidade, a Bienal do Livro da Bahia não acontece desde 2013.  A última edição do evento reuniu cerca de 175 mil visitantes.  Mas, como na música Salvador não inerte, do bloco afro Olodum, “Salvador se mostrou mais alerta”, e, em 2017, aconteceu a Flicaixa, evento literário que surgiu devido ao sucesso da Festa Literária de Cachoeira (cidade localizada a 130km de Salvador) e, finalmente, a primeira edição da Flipelô – Festa Literária Internacional do Pelourinho, correalizada com o Sesc.  Em sua segunda edição, além da programação no Teatro Sesc-Senac, na Flipelô ocorreram atividades em diversos outros espaços do Pelourinho, dos quais destaco as da Casa das editoras baianas e da Casa do Benin.

 A primeira boa impressão que tive, ao chegar ao Pelourinho, foi encontrar o Teatro Sesc-Senac lotado de estudantes assistindo à mesa Qualquer semelhança não é mera coincidência! O evento apresentou a história política (e futebolística) do Brasil na mira da ficção, com José Almeida Júnior (DF) Mário Rodrigues (PE), mediada pelo jornalista Rodrigo Casarin (SP), na sexta-feira, às 14 horas.  Tive a boa impressão quando percebi que estava diante de um público escolar espontâneo, cujas perguntas dirigidas aos escritores se mostraram bem consistentes.

Vagner Amaro, Daniela Galdino e Aline Bei. Mesa: Uma literatura elaborada e divulgada por elas. Foto: Divulgação.

As mesas com as escritoras Daniela Galdino e Aline Bei, na sexta, e com as escritoras Cidinha da Silva e Ana Paula Maia, no sábado, cuja mediação foi feita por mim, também contaram com o teatro lotado, dessa vez, de adultos interessados, participantes animados com as temáticas que foram levantadas.  Ainda sobrou fôlego para acompanhar a mesa com Vera Eunice, filha de Carolina Maria de Jesus, e com Tom Farias, autor da biografia sobre a escritora.  Um bate-papo animado, divertido e emocionante, mediado pelo grande poeta Salgado Maranhão.  Deixo aqui uma pergunta surgida da plateia: “Quando teremos um Instituto Carolina Maria de Jesus, para cuidar da memória e divulgar a obra da autora?”

Na Casa das editoras baianas, pude ter contato com muitos livros que merecem circular mais, para além dos limites baianos.  Na casa do Benin, na feira PeriFeirAfro, conheci o trabalho da Editora Segundo Selo, que vem editando escritores e escritoras baianas em seleções sérias e publicações com projetos gráficos de muito bom gosto. A programação, pensada pelo gestor cultural Chicco Assis, valorizou os coletivos de produção literária negra da periferia da cidade.

Gisele Soares. Foto: Adeloyá Magnoni

Ao chegar à Casa do Benin, já estava sendo realizada a mesa A Poesia Periférica no Centro da Literatura Soteropolitana, com um grupo de jovens negros e negras, integrantes de saraus como o Bem Black, da Onça, do Cabrito, do Jaca, da Raça, Bairro da Paz Vive e do Coletivo Pé Descalço.  Uma jovem poeta, Gisele Soares, comentava que aos oito anos uma professora mencionou que o que ela escrevia era poesia, mas, em seguida, outro professor lhe disse que, se ela quisesse ser escritora, morreria de fome.  Foram necessários anos para que a menina, descreditada, voltasse a escrever. Hoje, adulta, ela escreve e persiste na literatura, encorajando outras meninas a não desistirem. Ela participa do livro Poéticas Periféricas: novas vozes da poesia soteropolitana, lançado em 2018, que reúne textos de cem poetas da periferia de Salvador.

Com o tema A amizade é o sal da vida, frase de Jorge Amado, e homenageando o escritor João Ubaldo Ribeiro, a Flipelô ainda reservou espaço para uma programação infantil e, na cidade da música, para apresentações musicais, como a de Moraes Moreira.  Na Feira de Economia, Arte e Cultura do Sagrado, realizada na Praça Quincas Berro D’Água, o Cortejo Afro, um dos blocos com uma das concepções artísticas mais interessantes de Salvador, encerrou sua apresentação cantando Língua, de Caetano Veloso.

A Flipelô é um belo acontecimento literário, pela dimensão da sua programação, pela adesão do público e pelo espaço em que acontece, o Pelourinho – repleto de atrações históricas e culturais ̶, e por Salvador ter uma forte tradição artística.  Uma pesquisa denominada Cultura nas Capitais, realizada pela consultoria JLeiva Cultura & Esporte, em parceria com o Instituto Datafolha, apontou que Salvador é a cidade que mais lê, entre as 12 capitais mais populosas do Brasil.  Ainda  segundo essa  pesquisa, na opinião de quase um terço da população pesquisada (32%) o acesso gratuito é determinante para que  eventos culturais sejam frequentados.

Salvador é uma cidade que precisa realizar consistentes políticas e ações inclusivas; neste sentido, um evento com uma programação gratuita, interessante e diversificada, promovendo a literatura ̶ em um diálogo, que tende a crescer, com as diversas manifestações literárias que já ocorrem durante o ano em vários espaços desta cidade ̶, merece que nos empenhemos para que tenha vida longa. Que venha a edição 2019 da Flipelô.

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