dia de feira

Foto: Michal Hustaty

– Quantas vezes você vai repetir a mesma coisa hoje, André?

Limpando a testa com o pano de prato manchado de café, Elza tentava manter a calma ao falar com o filho. As admoestações eram seguidas de gestos impacientes e do estalar de dedos, movimentos que acabaram se tornando marca registrada do homem de trinta e dois anos. Atirando os restos de comida no lixo, André empilhava os pratos na pia antes de tentar retirar a gordura impregnada no azulejo azul, mais um toque do que uma ação consciente.

– Entenda: a senhora não pode ficar se desgastando tanto. Quatro pessoas moram nesta casa. Aqui não é nenhum hotel. Então, os dois príncipes ali também devem ajudar – fala André enquanto aponta de forma impaciente para os irmãos.

Rafael, o caçula, costumava observar essas discussões com pensamentos mergulhados no tédio. Mas, no fundo, ele conseguiu entender bem cedo: André agora é o responsável pela casa, pela família e pela existência daqueles que sobrevivem. Desde a morte do pai, vitimado pelo câncer que poderia ter sido diagnosticado em um acompanhamento médico básico, o filho mais velho ocupou a direção da casa. Por força das circunstâncias, ele foi obrigado a ser mais do que deveria. Algumas vezes, as tempestades transformam camponeses em marinheiros. Essa é a realidade que a família aprendeu a aceitar.

Enquanto André e a mãe discutiam responsabilidades na cozinha, Daniel estava deitado no sofá velho, desbotado e com pedaços de madeira saltando a olhos vistos. Ele sempre inventava um sintoma ou doença estranha para evitar qualquer ajuda na casa ou fora dela. Depois que terminou o ensino médio, Daniel costumava gastar as preciosas horas do dia pulando da cama para o sofá, do sofá para a cama. Por mais que a família aconselhasse ou até mesmo brigasse, ele mantinha a mesma inércia diante do mundo.

– Amanhã é dia de feira -, disse André, antes de gritar da cozinha para que o irmão falso hipocondríaco baixasse o volume da televisão. – Vou precisar sair daqui mais cedo do que de costume, mas vou deixar o café pronto.

Elza varria o chão da cozinha freneticamente, arrastando a vassoura em formas retangulares. Ela pensava na feira… Pensava no marido carregando os sacos pesados sem reclamar; na roupa suja e no sorriso sem todos os dentes. Mas quem se importa com uma boca cheia de dentes?

 O dia das compras sempre foi o momento mais especial naquela casa. Enquanto uns esperam por viagens, outros por objetos novos e outros por festas animadas, aquela família sempre esperou pelo dia da feira. O maravilhoso dia em que o pai voltava repleto de frango, carne moída, peixe, frutas e verduras… Ah, as frutas… Tão doces, tão suculentas! Bastava apenas arrancar um pedaço machucado ou cravado por cores incomuns; bastava apenas mergulhar a carne do frango em água fervente, banhando-a em vinagre, limão e sal; bastava apenas separar o podre do saudável; o ruim do bom. Afinal, não é assim a seleção humana? Separar, selecionar, filtrar, apartar, desunir, afastar, escolher, diferenciar? O que faz de certos homens escravos e de outros, homens livres? Quem dominou a diferença?

André terminou de ajudar a mãe na cozinha e coçou a cabeça. As costas estavam dormentes e as pálpebras derrubavam os olhos. Ele quer apenas dormir um pouco, antes de acordar com o barulho da torneira aberta. A mãe lavaria a louça novamente. Era uma maneira de exorcizar suas tristezas, e ele preferia aceitar.

Antes de se retirar, André abriu a janela e espiou o mundo lá fora. Casas amontoadas umas nas outras, interligadas por varais improvisados e fiações clandestinas. As almas que subsistiam ali, esquecidas e tragadas, ainda eram almas. Resistiam. Abafadas, sem apoio ou sem nome, mas resistiam.

André fechou a janela depois de acenar para o velho dono do botequim da esquina. Foi naquele local cheio de lodo e bêbados que ele vendeu cocada para ajudar em casa. O pai tinha ido tentar a sorte em outra cidade grande, mas voltou de mãos vazias. Como tirar leite de pedra? Alguém sabe? Foi naquele bar, aos oito anos, que André soube que havia resistência; ele aprendeu que é fundamental manter uma possibilidade de resgate, nem que seja através de sonhos. No final do dia, ele carregava o dinheiro, fruto de um trabalho exaustivo. Horas em pé, horas rodando. Essa era a opção que o menino criou para ir além do caminho que os amigos e vizinhos foram obrigados a trilhar.

Anos depois, André ainda sonha. Ele quer dar à mãe uma velhice sossegada, com uma rede balançando suavemente na varanda coberta de flores. Ele quer ver os irmãos trabalhando, seguindo com suas próprias vidas e deixando de ocultar as tristezas em comportamentos infantis. André sonha com carinho, com uma força maior do que a que ele tem e com uma determinação que o faça capaz de suportar…

– Amanhã é dia de feira, filho.

A voz da mãe. O resgate que o mantinha de pé. Passando os dedos calejados pela cabeça do rapaz, Elza fala:

– Seu pai vive em você.

E aquela única frase o ressuscitou mais uma vez da morte. Por causa dela, ele continuaria vivendo, mesmo que a vida significasse ser tratado com descaso por funcionários e clientes do banco, afinal, ele era apenas o faxineiro; por causa daquelas palavras, ele continuaria levando a casa, a mãe e os irmãos em qualquer decisão que tomasse. Por causa daquela frase, tão simples e breve, ele continuaria aqui.

– Sim, mãe. Amanhã é dia de feira.

Desliga a luz.

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