“A chama da vela escorre. Seu pequeno lago de luz tremula. A escuridão se avoluma. Os demônios começam a se agitar” (Carl Sagan)

Em seu livro, O mundo assombrado pelos demônios: a ciência como uma vela no escuro o astrônomo Carl Sagan realiza um diagnostico sobre a ignorância de grande parte dos americanos acerca dos conteúdos da ciência, alertando para a mistificação da mesma. Para ele, a ciência, ao ser popularizada pela grande mídia, converte-se numa simplificação ordinária abrindo espaço para interpretações equivocadas, pseudocientíficas quando não beiram o misticismo fantasmagórico e conspiracionismo.

Se para os físicos é difícil combater os milhares de livros que são vendidos sobre “Atlântida, a lendária civilização de ciências avançadas”, pela evidência empírica de deslocamentos ocorridos no fundo do mar, pelo movimento das placas tectônicas e a impossibilidade de ter existido um continente entre Europa e as Américas num período que se aproxime da escala de tempo proposta, imagine para os historiadores que têm a difícil tarefa de desmistificar conteúdos de história que circulam em diferentes e múltiplos lugares e que confundem de modo proposital o conhecimento histórico com a opinião do senso comum.

Para dizer o que é História e como se faz é mais fácil começar pelo que não é, e certamente não é Opinião. Não pretendo aqui questionar ou reivindicar o estatuto de ciência para a História, afinal este debate não é novo e tem os seus especialistas, mas evidentemente independente das perspectivas teóricas e metodológicas adotadas pelos historiadores em suas pesquisas, existe um consenso mínimo de que a História se constitui num campo de saber especializado e se diferencia da opinião.

Refiro-me aqui às teorias conspiracionistas que não apenas tem o poder de atração de leitores e apoiadores, como disseminam o ódio, criando bodes expiatórios e inimigos políticos. Infelizmente este fenômeno não é algo novo na interpretação da história, pois, desde a revolução francesa o Padre Augustín Baruel já afirmava em 1797 que a revolução francesa havia sido resultado de uma conspiração de sociedades secretas e maçônicas sob inspiração de filósofos iluministas. Já no século XX, no contexto da revolução russa, algumas publicações, como o livro do inglês John Buchan, relacionaram os bolcheviques a um movimento de “Judeus Internacionais”, que tramavam uma “conspiração contra a civilização”.

Não podemos ignorar o papel destas teorias no desenvolvimento do antissemitismo, com sua intensa propaganda antimaçônica e antissemita que foram embriões do nazi fascismo. Assim como não podemos ignorar o avanço do conservadorismo no nosso país, especialmente neste contexto de crise política, que recupera a mesma paranóia conspiracionista da guerra fria, trazendo a partir de uma propaganda midiática cega e surda o retorno do inimigo comunista, agora sob a roupagem “lulopetista”. O prejuízo desta espúria alegação não desafia apenas a historiografia e a epistemologia, uma vez que assuntos de História, Filosofia, e das Ciências Humanas em geral, são usados de forma grosseira e simplificada, mas questiona lutas históricas e direitos de minorias, sob a alegação de fazer parte da conspiração comunista, e em última instancia serem subversivos.

As leituras realizadas a luz do conspiracionismo não apresentam interpretações alternativas do passado, a partir de novas fontes que iluminam a História, mas oferecem uma leitura conservadora que omite fontes, negando o passado e revelando a “verdade” que foi ocultada por conspirações políticas e ideológicas. Sob esta ótica surgiram o negacionismo do holocausto, assim como o negacionismo das ditaduras, na tentativa de contestar os conflitos sociais e construir uma visão harmônica do passado.

Nesta mesma perspectiva surgiu a contestação ao politicamente correto, que tenta não apenas minimizar o peso do passado, como também calar os sujeitos e sua necessidade de ressignificar o discurso. Se a linguagem por si só não é capaz de alterar os preconceitos enraizados em nossa sociedade, tão pouco ela pode ser naturalizada e passar por “inocente”. Mas longe de compreender o debate, os conspiracionistas preferem rotular não apenas o “politicamente correto”, mas todas as lutas e direitos das minorias como autoritárias, cujos desdobramentos resultariam em ditaduras: gay, feminista, negra etc.

Esta onda conservadora que reduz teorias e altera sentidos a fim de criar um pânico social, além de por em xeque os direitos das minorias, ignora o protagonismo destes sujeitos que têm demonstrado, desde sempre, infindáveis resistências contra todas as formas de assujeitamentos. E isto tem se materializado não apenas, através de discursos odiosos, mas por meio de ações que visam alterar a Constituição e, em ultima instância, achatar os direitos humanos.

Retomando o “inimigo comum” do mundo ocidental, o “comunismo”, o conspiracionismo a brasileira conseguiu transferir toda fúria às minorias, pois seriam revoltosas e subversivas. Lembrando que o desenvolvimento dos direitos humanos remonta ao iluminismo e à revolução francesa, ganhando relevância após a terrível experiência do holocausto, se ampliando nos anos 1960 com o movimento pelos direitos civis nos EUA protagonizada por negros, e que passaria a fazer parte da estratégia da nova esquerda pós-declínio do socialismo no Leste Europeu. Aqui não podemos esquecer a tão difundida ideologia do “marxismo cultural”, que afirma existir uma conspiração no mundo através da escola de Frankfurt para destruir os “verdadeiros valores ocidentais”. Novamente temos a retomada do antissemitismo e anticomunismo, uma vez que não podemos esquecer que muitos intelectuais vinculados a esta escola eram de origem judaica.

Contra este mundo de conspiração que ronda os “cidadãos de bem do ocidente”, vemos o crescimento da Escola sem Partido, que propõe a judicialização da educação e a transformação de alunos em fiscais de uma ditadura jurídica, que pretende ser neutra, coisa que nós sabemos ser impossível. Além da criminalização constante dos movimentos sociais, da tradição marxista, da diversidade e do pluralismo.

Sob o argumento de uma suposta “doutrinação marxista”, a Escola sem Partido propõe um caça as bruxas a toda e qualquer forma de pensamento que possa parecer “de esquerda”. Temas como justiça social, preconceito, descriminação, violência (como o tema que apareceu na redação do Enem no ano de 2015) estariam atestando o avanço da doutrinação marxista nas escolas. Lembrando que liberdade, direito à diversidade e justiça social constituem-se em princípios da Constituição de 1988, sendo temas de direitos humanos e, portanto, em nada se justificam como invenção ou intervenção “lulopetista”.

Ao identificar um pensamento como ideológico, os ideólogos da escola sem partido se “isentam” de possuir uma ideologia para não correr o risco de ter seu próprio pensamento contestado. Interessante é notar o caráter ideológico que recai apenas sob a esquerda, variando entre um racionalismo exacerbado e um irracionalismo imoral. Aliás, moral é o que em geral tem embasado os discursos mais radicais contra os direitos humanos.

Não desejo o reforço do academicismo como a única possibilidade de conhecimento, mas é indispensável que a história profissional caiba nas discussões que estão sendo encaminhadas, especialmente em espaços que se dizem educacionais. Paulo Freire já alertava que todos nós operamos a partir de uma base ideológica, restando saber se nossa ideologia era inclusiva ou excludente. E como professora e historiadora que sou, tenho trabalhado e torcido para que não só a História, mas que o meu país seja mais inclusivo e menos excludente.

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