RIO e JUAZEIRO DO NORTE, CE – Cícero Carlos comenta sobre a cultura e a confecção de bonecos de palha como expressão de sentimentos e do cotidiano local.

Rodolfo Targino: Como surgiu a ideia de criação do artesanato feito com palhas de milho?

Cícero Carlos: A arte de trabalhar com a palha é muito antiga. Segundo a história, na Idade Média o chão das casas era revestido por esteiras feitas com palha colocadas sobre terra batida. A Europa utilizava a palha do trigo nos chapéus, cultivado na Toscana, Itália. A França usava palha de chuchu. O Japão utilizava palhas coloridas (no século XVI) em caixas com tampas decoradas. Eram muito usadas na forração de móveis.  O artesanato com a palha de milho aparece com destaque na Alemanha, Romênia e Finlândia. Segundo registros o milho mais velho é originário da América, em função da descoberta em 6.000 a.C, no vale do Tehuacan, México. No Brasil, o artesanato utilizando, esta fibra teve mais destaque no estado de Minas e Santa Catarina. Hoje praticamente todos os estados trabalham a palha com características particulares. O Ceará também incorporou essa tipologia. O artista Meinrad A. F. Horn, alemão que vivia na cidade catarinense de Mafra, foi um dos disseminadores da arte de fazer bonecos com a palha de milho em nossa terrinha. Faleceu em 2003, todavia sua esposa e família continuam até hoje com os trabalhos manuais.

A criação surge praticamente de duas necessidades. A primeira de expressar os sentimentos; geralmente reflete aspectos da comunidade onde estamos inserimos. Já dizia Leon Tolstoi: “A arte não é um trabalho manual, ela é a transmissão de sentimento que o artista experimentou.” A segunda financeira. Infelizmente nesse mundo capitalista não sobrevivemos sem uma renda.  Uma arte que parte do indivíduo para a comunidade, “a arte é a forma mais intensa de individualismo que o mundo já conheceu”, segundo Oscar Wilde.

R. T.: Como acontece a confecção dos bonecos?

C. C.: Fico feliz por ter tido a oportunidade de aprender a arte de fazer boneca com uma senhora chamada Dorinha, artesã de Juazeiro do Norte. Aqui já nascemos praticamente artistas porque é uma cultura que vem de pais para filhos. Por exemplo: meu pai era escultor, minha mãe e avó faziam chapéus traçados com palha de carnaúba. Como eles não tinham chance de estudar, os trabalhos manuais eram seu passatempo e “ganha-pão” (arte herdada dos índios que viviam na região, chamados Kariris).  Além de esculpir a palha de milho, desenho, faço esculturas de argila, sou origamista e me divirto fazendo cartões manuais.

oficina de artesanatoQuando nos encontramos diante das fibras maleáveis e resistentes da palha de milho, nem sempre nos conscientizamos dos resultados tamanhos que poderá resultar. As formas com as quais planejamos moldar os bonecos tomam dimensões próprias, movimentos harmônicos. Até parece que é a palha que usa a gente para tomar vida. O nosso braço direito colaborador na criação do boneco é a água. Ela umedece a palha seca, interfere imediatamente nesse processo de deixar a fibra possível de ser moldada.  Além de bonecos, os animais e plantas podem ser confeccionados, dependerá do tema escolhido e da criatividade. Conhecer um pouco de anatomia, saber desenhar ajuda ainda mais na construção dos corpos, pois as proporções físicas e expressões podem ser reproduzidas, mas não são pré-requisito essas habilidades para fazer os bonecos. “Toda arte nada mais é do que imitação da natureza”, dizia o Lucius A. Seneca.

R. T.: Qual a mensagem que você pretende passar através do seu artesanato?

C.C.: Não tenho pretensão nenhuma, de através dos bonecos, induzir a uma mensagem predeterminada. O que posso relatar são algumas reações das pessoas diante deles. Boa parte delas sorri quando se deparam pela primeira vez, acham engraçados, curiosos pelo fato da matéria-prima ser a palha do milho, talvez. Algumas pessoas relembram seu passado, uma situação refletida na cena em que os bonecos personificam.  Pode ser também visto meramente como uma peça ornamental e/ou utilitária.  Mês passado visitei uma amiga que já está aposentada, a primeira Bibliotecária da região do Cariri (região que abrange várias cidades). Estou escrevendo um artigo sobre sua vida com o objetivo de resgatar a contribuição para área. Nessa visita me mostrou uma Bibliotecária sentada, feita de palha de milho, ao lado a CDU (livro para classificação decimal) e outros materiais pertinentes à sua profissão, tudo em miniatura (lembrei que tinha feito e presenteei no seu aniversário, há alguns anos). Naquele suporte informacional ficou registrada uma série de lembranças da época, inclusive da minha experiência ao seu lado como auxiliar de Biblioteca. Quem sabe consciente ou inconscientemente pretenda provocar com essa arte, um sentimento de bem-estar, de espontaneidade e ingenuidade.

R. T.: Como é a aceitação das pessoas perante essa arte?

C.C.: A melhor possível. Uma vez um grupo de estudantes de história me encomendou uma maquete com aproximadamente dez tipos de torturas. Fazer aquilo foi torturante em função das técnicas dolorosas utilizadas. Precisei estudar história das torturas e expressão facial para compreender o que necessitaria executar e como adaptar alguns objetos com a palha. Ficou muito legal. Aprendi horrores. Outra dia retratei vinte cenas nordestinas para uma instituição dos Estados Unidos. Também tem uma boa aceitação na Holanda. Hoje minha irmã Ceiça aprendeu e também é bonequeira. Isso me deixa mais tranqüilo, porque somente eu fazia esse tipo de artesanato na família, depois outros membros da família aprenderam. As oficinas de bonecos já fazem parte da minha vida. Centros Culturais, Bibliotecas entre outras instituições solicitam as oficinas.

R. T.: Na sua opinião, a cultura artesanal ainda está restrita a região Nordeste do país?

C.C.: O artesanato é um dos ofícios mais antigos do mundo. Com a industrialização avassaladora e a chegada da informática muitas tradições foram extintas. Não sou contra o avanço tecnológico, mas a favor da humanização junto com a tecnologia informatizada. O mundo continua fazendo arte ou artesanato. Não tenho nenhum problema em ser chamado de artesão ou artista. O que acontece é uma valorização maior de certas áreas como pintura, esculturas clássicas. O que faço com a palha de milho tem o mesmo valor que um compositor ao concluir uma partitura ou a um mestre de cozinha ao terminar um prato. Todos somos artistas; expressamos algo que não é comum a todos e o bom é isso: compartilhar saberes por meio da arte. Agradeço ao Rodolfo Targino e a equipe do Biblioo pelo convite para falar um pouco sobre artesanato. Visitem o blog e caso sintam vontade, escrevam as impressões que tiveram.

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