Por Silvio Essinger de O Globo

Um Rio de Janeiro jovem, negro e suburbano, em sintonia com o movimento black power dos EUA, e que chegava a juntar mais de 10 mil pessoas para varar a noite dançando o funk de James Brown, ressurge nesta quinta-feira na exposição “1976: Movimento Black Rio 40 anos”, a partir das 19h, no Teatro Odisseia, na Lapa. A noite é apenas o começo de uma tardia, mas necessária, revisão histórica da Black Rio, um dos grandes (e pouco documentados) acontecimentos culturais de massa da cidade, que dará origem agora, ainda, a dois livros e um documentário (produzido por um dos protagonistas do movimento).

— O projeto estava na gaveta há uns 17 anos, até que ganhamos um edital no ano passado e conseguimos levar a ideia adiante — conta o curador da exposição, o DJ e pesquisador Zé Octavio Sebadelhe, cujo pai era frequentador dos bailes black. — Sempre fui um curtidor dessa história, desse momento. Foi realmente um coqueluxe do subúrbio, a opção para quem não se identificava com o Ed Lincoln (organista, cujos bailes eram célebres na Zona Norte carioca dos anos 1960). Surgiu uma juventude de milhares de blacks que iam ao baile para dançar aquele som, o que eles realmente queriam curtir.

Apesar de os bailes terem mobilizado a cidade desde o início dos anos 1970 (o deflagrador foi o Baile da Pesada, dos DJs Big Boy e Ademir Lemos, que acontecia no Canecão), a escolha de 1976 como marco do movimento se deve ao fato de ter sido o ano que deu visibilidade ao movimento para além da cena. Foi quando a jornalista Lena Frias e o fotógrafo Almir Veiga publicaram uma reportagem no “Jornal do Brasil” documentando o fenômeno dos bailes black do subúrbio carioca, com centenas de equipes de som e DJs como Mister Funky Santos, Luizinho Disc Jockey Soul e Paulão Black Power. As fotos de Almir Veiga (como a que se vê acima) estão reunidas na exposição, que irá itinerar por outros locais a serem definidos.

— A Black Rio aconteceu de forma espontânea. O Big Boy e o Ademir não pensavam, inicialmente, em tocar black music, aquele era um refugo da indústria fonográfica que chegava a eles — observa Zé Octavio, que escreve com Felipe Gaoners Lima um livro sobre o movimento, a se lançado no dia 6 de setembro, em show da Banda Black Rio (formada no calor da publicação da reportagem de Lena Frias e que fez sucesso com o LP de estreia, de 1977), no Sesi Centro (junto com a exposição, os shows seguem até o fim do ano, em outras unidades do Sesi).

PESQUISA OBSESSIVA

Músico, cineasta, pesquisador, romancista, psicólogo e psiquiatra, Marcelo Gularte também mergulhou na história da Black Rio, mas como parte da pesquisa para uma grande “Enciclopédia do Funk”. Obcecado, ele vasculhou a história de equipes fortes, como a Soul Grand Prix, Furacão 2000, Modelo, Sua Mente numa Boa, Rick, Revolução na Mente — e na de tantas outras, mais obscuras. Ele fala com entusiasmo de Irajá (“grande celeiro de equipes”) e da descoberta de que a primeira equipe de subúrbio foi Mr. Pinguim, criada em Colégio, na virada dos 1960 para os 70.

— Achava que ia fazer um livro só, com toda a história do funk no Brasil, mas acabei me empolgando. Passei um ano inteiro me dedicando a isso, perturbando todo mundo — confessa ele, que editou por conta própria um exemplar do primeiro volume da enciclopédia, cobrindo os anos 1970, com 320 páginas. — O livro tem mais de 500 imagens, é o maior acervo de imagens (principalmente filipetas e capas de discos) sobre o funk do Rio e de São Paulo. Espero conseguir alguém que o publique.

Um dos fãs do livro de Gularte (e visto por Zé Octavio como “o grande articulador da Black Rio”) é Asfilofio de Oliveira Filho, o Dom Filó, que levou a black music ao clube Renascença e depois foi um dos fundadores da Soul Grand Prix, equipe na qual atuou como uma espécie de MC, tomando o microfone para pregar ideias de afirmação negra. Filó está à frente da produção do documentário “Black Rio, por onde andas?”, que deve sair no ano que vem, compilando raras imagens e depoimentos.

— Os DJs, os dançarinos e o público dos bailes, cada um tem uma história. A equipe JB Soul, por exemplo, foi montada por um ex-serralheiro — ilustra Filó, que ainda prepara um livro de memórias, no qual vai contar sobre os agentes do Departamento Geral de Investigações Especiais (DGIE) que se infiltravam nas festas fingindo-se de dançarinos e de um fictício J. Black (que ele inventou com três jornalistas), colunista de bailes do jornal “Última Hora”. — Aquilo começou como uma coluna e chegou a uma página inteira. Tinha gente que achava que o J. Black era um branco, porque um negro não conseguiria escrever daquela maneira. E também quem acreditasse que poderia ser alguém do samba, tentando se virar num assunto que não conhecia.

Para Zé Octavio, o fenômeno Black Rio sofreu muito com os preconceitos, já que, de um lado estavam os reacionários, com medo de que os blacks invadissem a Zona Sul; e, de outro, os universitários negros de esquerda que viam americanização.

— Os blacks tomavam porrada de todo o lado — resume Zé. — A frustração dessa galera é não ter sido compreendida.

Filó, no entanto, aponta que 2015 foi uma espécie de ano-ápice do renascimento da Black Rio. Foi quando, entre outros bailes, houve o da recriada Soul Grand Prix.

— Teve até um duelo de equipes com a Cashbox. E o mais importante é que ano passado houve atividades na Zona Norte e Baixada, que sempre foram o foco da Black Rio — conta o fundador da Soul Grand Prix. — A nova geração tem que entender que o que está aí hoje começou ali. Estávamos lá levantando uma bandeira para que pudéssemos viver sem racismo. E é como se não tivéssemos existido.

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