Bibliotecas são espaços de encontros, de trocas de experiências, de acervos de livros que abrem as mentes das pessoas para as diversas possibilidades, conhecer narrativas, histórias, lugares do mundo nos quais não se chegaria de outras maneiras, pensamentos políticos diferentes.

Em muitos bairros de São Paulo as bibliotecas são os únicos equipamentos culturais presentes, como é o caso de Perus, com a biblioteca Padre José de Anchieta. Torna-se um espaço comunitário, com um uso que vai além daquele mais tradicional: leitura, contação de histórias, empréstimos de livros… É um local de encontros de coletivos periféricos, pessoas que questionam a ordem da manutenção burguesa da sociedade, que defendem a literatura marginal, a arte subversiva, tudo que questiona a nossa estrutura machista, patriarcal e capitalista.

Temos na cidade de São Paulo 54 bibliotecas (se contarmos apenas as ligadas à Secretaria de Cultura), que compõem a maior rede de bibliotecas públicas de toda América Latina. Essas bibliotecas apresentam diversos problemas que precisam sim ser resolvidos: falta de pessoal, de recursos, de materiais… Mas estamos diante de uma conjuntura em que 43,5% da verba da cultura está congelada, então como resolver essas questões? Com certeza não é por meio da gestão de organizações sociais (OSs)

Mesmo com todos esses problemas, o fato de estar sob a administração direta da esfera municipal garante que as bibliotecas pelo menos continuem existindo. A verba para o pagamento dos servidores não pode ser contingenciada também. Diferente do que ocorre na OS. Um exemplo é a SPLeituras, uma das maiores organizações sociais na área de Cultura que tem diversas parcerias com o governo do estado de São Paulo, onde mantêm a Biblioteca São Paulo, Biblioteca Parque Villa Lobos e a parceria com o Sistema Estadual de Bibliotecas Públicas de São Paulo.

Segundo o último relatório de atividades disponível no site da SPLeituras, referente ao segundo trimestre de 2016, houve redução na verba enviada pelo estado, o que diminuiu o horário de funcionamento da Biblioteca São Paulo, reduzindo o número de usuários em pelo menos 3%, causando demissões e diminuição da programação e dos materiais. A informação está disponível na página 2 do referido relatório, o qual pode ser visto clicando aqui.

“Como fruto do corte de recursos, a SPLeituras foi forçada a reduzir o horário da Biblioteca de São Paulo, cortando o terceiro turno (noite). O corte resulta em não atender o público que não podia ir à biblioteca durante o horário comercial, e por isto tem efeito bastante dramático, sugerindo que qualquer melhora na situação orçamentária deveria provocar uma revisão imediata da medida. Naturalmente, o resultado é que o público da Biblioteca de São Paulo diminuiu neste trimestre, ficando cerca de 3% abaixo da meta”, diz o documento.

Esse é um risco iminente da gestão por OSs. Em um momento de crise, ou simplesmente de opção política do executivo, diminui-se a verba e com isso se reduz os serviços oferecidos à população. Argumenta-se que faltam usuários e fecham-se bibliotecas. Pra que manter 54 bibliotecas se eu posso manter 10 funcionando “bem”? É uma lógica de redução de custos que não leva em consideração a importância do espaço dessa biblioteca para a sua comunidade.

A importância da biblioteca para a comunidade

Outra opção é se manter abertas as 54 bibliotecas e se apropriar desse espaço em prol da política governista. A biblioteca como único ou um dos únicos equipamentos culturais em certos bairros exerce um forte contato direto com a comunidade, um espaço de construção política e de possível articulação entre grupos. Dentro de um projeto político neoliberal, espaços de resistência não são bem-vindos. Ou são eliminados ou apropria-se desses espaços para construção dos projetos políticos governistas. Como manter a diversidade da programação cultural da cidade, o espaço aberto aos coletivos, aos projetos comunitários se quem vai determinar a programação cultural são as OSs?

Plano de desenvolvimento de coleções da cidade de São Paulo. Fonte: Sistema Municipal de Bibliotecas, 2016

A biblioteca Rubens Borba de Morais, em Ermelino Matarazzo, tem uma importância vital nesse bairro da zona leste. Qual o real interesse de uma OS em gerir essa biblioteca? Fazer valer o Manifesto da IFLA/Unesco sobre bibliotecas públicas? Por que SPLeituras, Poiesis ou qualquer outra iria querer investir em uma biblioteca em Ermelino Matarazzo? Acabar com esse espaço de resistência? Fechar as bibliotecas das regiões mais extremas e deixar algumas em regiões mais centrais de cada subprefeitura?

A iminência do fechamento das bibliotecas não é algo absurdo, basta observar a atual situação das bibliotecas-parque do Rio de Janeiro. Na biblioteca-parque de Niterói os funcionários foram dispensados sem aviso-prévio. Várias unidades seguem fechadas. A Biblioteca-Parque de Manguinhos está ocupada por profissionais e pela comunidade que não aceitam ver um espaço tão importante parado.

Em São Paulo temos outros exemplos na área da cultura: a recente extinção da Banda sinfônica do estado e o rompimento determinado pela justiça do contrato com a OS “Instituto Brasileiro de Gestão Cultural”, que era o responsável por gerir o Theatro Municipal, e que é acusada de desviar mais de quinze milhões de reais. Quem garante a fiscalização e a transparência dos recursos geridos pelas OSs?

Não podemos mercantilizar um bem público. Biblioteca pública é item essencial na formação da cidadania. Temos que melhorar? Muito! Falta pessoal? Temos mais de 150 bibliotecários aprovados em concurso público… Falta recurso? Descongelem o orçamento da cultura e invistam em serviços, programação, estrutura, materiais…

Nossas bibliotecas já são VIVAS, temos uma programação cultural rica, talvez por isso não seja do agrado de muitos. Não queremos ser “mini-MIS”, não queremos ser “mini..” nada, queremos oferecer um serviço de qualidade à população e para isso precisa-se de recursos.

Temos aprovada a lei do Plano Municipal do Livro, Leitura e Literatura e Biblioteca (PMLLLB) da cidade de São Paulo (2015), construída por diversos especialistas e pela sociedade civil, que fornece diretrizes para orientar a construção de políticas públicas para o município no que se refere ao acesso à informação, bibliodiversidade, políticas de leitura, formação de mediadores de leitura, dentre outros pontos. Nessa lei consta o fortalecimento da administração direta por meio da gestão com a participação popular, o que acontecerá por meio de conselhos comunitários consultivos. Não há nessa lei qualquer indicação de terceirização ou privatização de gestão.

Então, por que as bibliotecas são tão perigosas? Como já diria Guimarães Rosa, “Narrar é resistir”, ou como diria a máxima, “Os livros são perigosos, mudam as pessoas e as pessoas mudam o mundo!”. Para a antropóloga francesa Michèle Petit (A arte de ler ou como resistir à adversidade. São Paulo: Ed. 34, 2008, p. 64-66), a leitura e o contato com os livros possibilita às pessoas que tenham acesso ao saber, aos conhecimentos formais; e ter acesso a esse tipo de conhecimento permite ao indivíduo que ele participe do mundo, compreenda-o melhor, encontre seu espaço nele; assim como apropriar-se da língua, enriquecendo o seu vocabulário e a sua linguagem escrita, permitindo-o o ato de “tomar a palavra”, tendo uma cidadania mais ativa.

Não investir em bibliotecas públicas é uma escolha política. Não há interesse em se formar cidadãos críticos, conscientes de sua realidade, ou em permitir a existência de espaços de encontro, de sociabilidades. A gestão por OSs é uma estratégia do governo de se apropriar desses espaços e usá-los em benefício próprio, seja por meio de propagandas, ou por uma programação cultural direcionada às propostas já defendidas pelo PSDB, e que permeiam a ideia de “Escola sem partido”, na qual busca-se uma falsa “neutralidade”, eliminando-se a discussão sobre política, orientação sexual, gênero e assuntos relacionados. Isso vai de encontro à formação do pensamento livre, da pluralidade de ideias, da diversidade, que são princípios básicos de uma biblioteca pública.

Por isso é tão necessária a permanência das nossas bibliotecas! Não são apenas espaços físicos, mas espaços simbólicos que representam resistência dentro da proposta de desmantelamento da cultura.

Quem somos?

A Frente em defesa das Bibliotecas Públicas é um coletivo formado por profissionais das bibliotecas, do livro, da leitura, da literatura, artistas, educadores e cidadãos cientes da importância de não abrir mão de bibliotecas verdadeiramente públicas e vivas.

A cidade de São Paulo possui uma rede composta por 107 bibliotecas públicas (sendo 54 ligadas à secretaria de Cultura sob ameaça de serem geridas por OS) – entre temáticas, de bairro, centrais, ônibus biblioteca e bosque de leitura. Trata‐se do maior sistema de bibliotecas públicas da América Latina, recebendo cerca de 4 milhões de consultas por ano. O secretário municipal de Cultura da gestão João Doria, André Sturm, anunciou, no início de janeiro, que passará o controle de ao menos 52 bibliotecas, além do Centro Cultural São Paulo (CCSP), para as mãos de organizações sociais (OSs).

Dezenas de pessoas compareceram ao ato. Foto: Luciana Santoni / Organização do ato

O que são as OSs (organizações sociais)?

São entidades privadas sem fins lucrativos que recebem auxílio do governo para prestarem serviços de relevante interesse público. Desta forma, as bibliotecas e o Centro Cultural não seriam vendidos, mas uma OS receberia dinheiro do governo para realizar a manutenção, as contratações e oferecer os serviços.

Por que a gestão por OSs é uma escolha ruim?

1) Falta de controle social sobre os critérios para que uma organização social assuma a gestão das bibliotecas e equipamentos culturais;

2) Alta rotatividade de pessoal e falta de pessoal qualificado, devido à economia com a folha de pagamento, o que prejudicada e o envolvimento do profissional com a comunidade e a continuidade das ações fica comprometida;

3) A OS decide como executar o serviço, de quem comprar os materiais (e a que preço) e a população não tem nenhum mecanismo de controle sobre estas ações, podendo resultar em desvio de dinheiro. No Teatro Municipal, sob gestão do Instituto Brasileiro de Gestão Cultural (IBGC), houve desvio de 15 milhões;

4) As decisões nas OSs vêm de cima para baixo e isso desrespeita as características e produções culturais locais e a autonomia dos profissionais envolvidos;

5) Risco de interrupção dos serviços em caso de crise financeira, como vimos recentemente no Rio de Janeiro, com as bibliotecas-parque sob gestão do IDG.

Manifestantes realizam abraço simbólico ao Centro Cultural São Paulo durante o primeiro ato contra a possível privatização das bibliotecas. Foto: Facebook

Quais as nossas propostas para melhorar os serviços das bibliotecas?

1) Destinar mais recursos para os editais de cultura;

2) Nomeação dos Analistas de Informações, Cultura e Desporto – Biblioteconomia aprovados no concurso homologado em Março de 2016;

3) Cumprimento das medidas e metas previstas no Plano Municipal do Livro, Leitura, Literatura e Biblioteca (PMLLLB), instituído pela Lei Municipal N° 16.333/2015.

Lista com os espaços de leitura da cidade de São Paulo. Fonte: Sistema Municipal de Bibliotecas, 2016

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