A ausência de escritores negros na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) deste ano foi motivo de muitas críticas ao evento por parte de autores e do público em geral. “Se não lemos todos os passos criativos da nação, estamos lendo uma nação em pedaços, estamos lendo uma nação incompleta”, afirmou há época a escritora Conceição Evaristo. Paulo Werneck, curador da festa, afirmou que a organização havia tentado convidar autores negros, mas não conseguiu trazê-los.

O fato parece não ser um caso isolado. No Brasil inteiro muitos destes autores negros publicam apenas em pequenas editoras, muitas vezes bancando suas próprias edições em pequenas tiragens e, por este motivo, vendem seus livros em eventos menores e não chegam às grandes livrarias e distribuidoras. Percebendo este cenário, o bibliotecário e jornalista Vagner Amaro resolveu lançar uma editora, a Malê, voltada à temática afro-brasileira.

Embora recém criada, a Malê vem se consolidando no mercado como uma alternativa aos autores negros, mas também aos leitores e bibliotecários que muitas vezes encontram dificuldades em adquirir obras neste seguimento. Nesta entrevista à Revista Biblioo, Amaro relata suas motivações para desenvolver o projeto, além de falar da contribuição que sua formação como bibliotecário deu ao seu negócio. Ele ainda critica o mercado que dificulta e subvaloriza o trabalho dos pequenos editores.

Como surgiu a ideia da editora e porque o foco na literatura afro-brasileira?

A ideia da editora surgiu do meu trabalho como bibliotecário e do meu cuidado com o desenvolvimento da coleção da biblioteca escolar em que trabalho. Ao tentar enriquecer o acervo com autores negros contemporâneos percebi que não conseguia adquirir muitos títulos e iniciei uma investigação para entender o motivo.  Descobri que muitos destes autores publicam em editoras pequenas ou bancam suas próprias edições em pequenas tiragens e por este motivo vendem seus livros em eventos menores e não chegam as grandes livrarias e distribuidoras, o que dificulta que sejam conhecidos e que seus livros sejam comprados.  Descobri também que muitos títulos, ao esgotarem as primeiras pequenas tiragens, não são reimpressos e fica simplesmente impossível consegui-los. É claro que um acervo é formado e desenvolvido de acordo com uma certa ideologia hegemônica na academia, no mercado e na sociedade em geral. Ao tentar garantir maior diversidade ao acervo e timidamente alterar esta estrutura que diz o que deve e o que não deve ser lido, encontrei estas dificuldades e, ao mesmo tempo, a inspiração para criar a editora e colaborar para modificar este quadro.

Vagner Amaro: bibliotecário, jornalista e gestor cultural. Foto: arquivo pessoal

Vagner Amaro: bibliotecário, jornalista e gestor cultural. Foto: arquivo pessoal

Já é possível identificar algum grau de retorno dos autores interessados em publicar?

O retorno é muito positivo.  Existe o desejo destes autores de saírem desta margem que são colocados pelo mercado editorial. Percebo um certo cansaço de alguns deles nesta atuação solitária de ter que lidar sozinho com todos os processos, que não são poucos, para a edição de um livro com a qualidade que o mercado editorial brasileiro já alcançou, assim como o cansaço de estar sozinho para fazer a divulgação da obra, a produção das “noites” de lançamento, o controle do recebimento de convites para participarem de eventos.  Então somos muito procurados, por ótimos autores e autores que desejam aprimorar seu texto e por isso buscam um editor.

E de leitores interessados em consumir?

A editora Malê começou a atuar no mercado em fevereiro deste ano (2016).  Percebemos que muitos dos leitores que compram nossos livros estavam alheios a literatura produzida por estes autores.   Tinham poucas referências de autores negros. O Machado de Assis apenas veio se tornar popularmente negro no Brasil depois que o movimento negro reivindicou a modificação do comercial produzido pela Caixa Econômica Federal em que o escritor aparecia como um senhor branco.   Livros didáticos tentam também muitas vezes embranquecer o Lima Barreto.  Então vi um aumento de interesse destes leitores.  Por outro lado, já havia um interesse por representatividade de negros que ascenderam socialmente nos últimos anos e de outros que ingressaram no nível superior, também nos últimos anos, sem contar um trabalho de divulgação literária que já vem sendo feito por uma geração de escritores desde o final da década de 70, que formou muitos leitores para a literatura afro-brasileira. Neste grupo estão escritores como Cuti (SP), Conceição Evaristo (MG), Miriam Alves (SP), Esmeralda Ribeiro (SP), Geni Guimarães(SP) e Éle Semog, aqui no Rio de Janeiro, além de muitos outros.  A luta pelo respeito a intelectualidade negra brasileira vem de longe. Cito o Abdias Nascimento, um dos grandes defensores dos direitos civis e humanos da população negra, cito o Joel Rufino dos Santos, Sueli Carneiro, Milton Santos, a Luisa Bairros, Lélia Gonzáles, Hélio Santos, mas podemos pensar também no século XIX, no Lima Barreto. Destaco também o trabalho do Paula Brito, negro, abolicionista, poeta, jornalista e editor, que foi o primeiro a publicar Machado de Assis. Busquem as obras destes escritores, solicitem para suas bibliotecas, façam mediações de leitura com estas obras e verão como a literatura brasileira e o pensamento brasileiro é muito mais rico do que às vezes parece ser.

Se pensarmos no Ranganatham e suas leis, se pensarmos no “para cada leitor o seu livro”, percebemos que muitos leitores ainda não estão encontrando os seus livros.

Faltam livros de autores negros para suprir a demanda das bibliotecas. Foto: arquivo pessoal.

Faltam livros de autores negros para suprir a demanda das bibliotecas. Foto: arquivo pessoal.

Além de bibliotecário, você é jornalista.  Essas formações lhe ajudaram ou ajudam na execução do projeto? Como?

É interessante porque minha primeira formação é como gráfico, depois que fiz Biblioteconomia e em seguida Jornalismo. Então de certa forma, sempre orbitei no universo dos livros, revistas, informação, difusão. A formação profissional como gráfico me ajudou a entender tudo, eu acho, sobre o livro físico, o objeto livro, as partes, tipo de papel, encadernações, impressão. A Biblioteconomia, muito mais o exercício da profissão que a formação acadêmica, me possibilitou entender um pouco sobre o mercado do livro, no lugar do consumidor, os catálogos que recebia, os distribuidores que visitavam a biblioteca, as estratégias de divulgação de um livro, além, é claro, de entender um pouco o leitor. Talvez nisso a formação tenha contribuído bastante, os segmentos, os interesses… Neste lugar de bibliotecário, consumidor de livros para bibliotecas, percebi as dificuldades que certas literaturas enfrentam para chegarem aos seus leitores.  Se pensarmos no Ranganatham e suas leis, se pensarmos no “para cada leitor o seu livro”, percebemos que muitos leitores ainda não estão encontrando os seus livros. Existe uma carência de representatividade de certos grupos da população na literatura brasileira e consequentemente nas bibliotecas, e é papel do bibliotecário contribuir para tornar seu acervo mais diversificado culturalmente.  Mas foi também como bibliotecário, mediador da leitura, que comecei a organizar e publicar livros, sempre vendo isso como uma estratégia de disseminação da informação.  O jornalismo foi fundamental para a forma como planejei construir minha carreira. Creio que minha formação como jornalista aparece em tudo que faço, nas ações e eventos de mediação da leitura, na forma como enxergo o mundo, nos projetos que desenvolvo, mas creio que contribuiu dentro das minhas aspirações profissionais, algo pessoal, na forma como escolhi estar no mundo.  A Biblioteconomia é repleta de possibilidades, eu sou especialista em Gestão Cultural. Creio que escolher se aprofundar, mesmo que de maneira autônoma, em certos campos do conhecimento, seja as Ciências Sociais, a Educação, Artes ou Tecnologia, contribui muito para se diferenciar no mercado.

Quais as maiores dificuldades enfrentadas pela editora?

A editora enfrenta as mesmas dificuldades que editoras pequenas enfrentam no Brasil.  A distribuição, a dificuldade de ter os livros nas livrarias, pois o desconto para consignar (deixar os livros para que sejam vendidos pelas livrarias) com uma grande rede de livrarias gira em torno de 50% e as grandes redes de livrarias não estão interessadas em trabalhar com as editoras pequenas. Então sugerem que trabalhemos com distribuidores, que também solicitarão seus descontos.  Falta profissionalização em parte do mercado, então há um controle ruim do fluxo do livro que você distribui. Para você se associar em algumas organizações do livro também não é tão simples, pois mesmo que você se proponha pagar as taxas, você precisa ser aceito pelos que fazem parte destas associações.  Mas no momento temos optado por ter os livros em Livrarias que acreditamos no trabalho e veem o livro como um bem cultural importante para o desenvolvimento da sociedade e não livrarias/papelarias, que vendam livros com o mesmo descuido de quem vende borracha, lápis, tesoura e papel.  A Internet é uma grande aliada neste sentido, pois vendemos também em livrarias virtuais.

Àjoyò foi um evento literário realizado recentemente pela Malê.  Como você avalia esta experiência?

A Àjoyò – festa literária da literatura afro-brasileira – foi um evento importantíssimo para editora. Investimos com o objetivo de criar um modelo de festa literária que sirva como um painel, uma vitrine para a literatura dos escritores negros brasileiros e que venha ser itinerante, sendo realizada em outras cidades.   No ano passado a curadoria da Flip – Festa Literária Internacional de Paraty – alegou certo desconhecimento sobre estes escritores. Nossa festa se contrapõe a isso, joga luz nestes escritores e nas suas obras e afirma que este “desconhecimento” não será tolerado.  O evento teve uma boa recepção do público, que lotou o salão do Centro Cultural da Bola Preta, no Rio de Janeiro, para ouvir e celebrar estes escritores.  Pudemos contar com escritores da geração dos anos 70 a escritores que veem surgindo ao longo destas duas últimas décadas, como a escritora baiana Lívia Natália, que tem um trabalho literário de uma seriedade, compromisso, qualidade e potência, que é um absurdo que não seja mais conhecida por quem se interessa por literatura.  Na festa também lançamos o livro Letra e tinta, produto do Prêmio Malê de Literatura, que é voltado para jovens negros. Com ele foi possível perceber que tem uma turma de jovens, muito talentosa, que vem se preparando para ocupar os espaços que lhes são de direito na cena literária brasileira.

Comentários

Comentários