Rui Marques Simões, do portal DN Portugal.

Quem salva as joias da casa dourada da Universidade de Coimbra, [Portugal]? Na Biblioteca Joanina (e na casa-forte da Biblioteca Geral) guardam-se obras raríssimas do século XII à atualidade. Esta é uma viagem pelo trabalho de ourives de quem as conserva e restaura e pelas dificuldades que enfrenta para proteger o seu bem mais precioso, o livro.

Envolve morcegos, documentos do século XII, relíquias de valor incalculável, pedaços da história de um país quase milenar e, “escondida” na cave, uma prisão. Podia ser o enredo de um livro do domínio do fantástico, mas é a Biblioteca Joanina. A casa dourada da Universidade de Coimbra, que não é apenas um monumento capaz de seduzir qualquer turista, é uma biblioteca viva, a funcionar, e onde se luta por não deixar os velhos livros morrer.

Na cave, paralela à antiga Prisão Académica, esconde-se uma das oficinas onde Elsa Girão dirige os trabalhos de restauro das obras da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra (BGUC, a entidade responsável pela Joanina). A conservação e reparação de livros antigos e/ou danificados é um trabalho de ourives: vê-se nos movimentos lentos e precisos de Elsa e de quem com ela trabalha, de luvas, a espalhar os produtos (“reversíveis e não químicos”, por vezes coisas tão simples como sabão azul e pó de talco), a passar lentamente os dedos por cada página ou a encerar encadernações com golpes ritmados e exatos. Esse é um trabalho fundamental para recuperar os livros mais recentes (da Geral), desgastados pelo uso, e para preservar os mais antigos (da Joanina), fustigados pelo passar dos anos.

Elsa Girão, de 38 anos, é a única técnica de restauro da instituição (coadjuvada por outras funcionárias da Universidade de Coimbra). É ela quem guia o DN pelo trabalho de conservação, higienização e hidratação dos livros – passos para evitar a sua degradação. E que explica o longo processo de recuperação dos que se estragam. “É um trabalho de paciência e paixão, feito por etapas. Pode até levar meses. Cada caso é um caso. Nalguns, já não temos capa. Se a costura está inteira mas o livro é pesado, é melhor fazer estrutura nova para que as cordas aguentem o cartão. E quando é preciso intervencionar o miolo, preencher buracos e consolidar, tudo tem de ser planificado, secado e envolve tempos de espera. Enquanto se deixa algo a secar, agarra-se outra coisa”, descreve.

Nada disto são apenas preocupações de apaixonados por restauro e biblioteconomia – mesmo que Elsa Girão seja ambas as coisas. A Joanina (deve o nome a D. João V, o rei que a mandou erguer) e o seu rico espólio, de mais de 55 mil de obras (publicadas entre o século XII e 1801), não são um fenómeno de nicho: são um monumento visitado anualmente por centenas de milhares de pessoas, detentor de um conjunto de livros raríssimos – ainda que as maiores preciosidades, como uma 1.ª edição de Os Lusíadas e a Bíblia Hebraica de Abravanel (da qual há 20 exemplares no mundo), estejam guardadas na casa-forte da BGUC. “A Biblioteca Joanina é um local único em Portugal e invulgar no contexto europeu. Os estrangeiros que nos visitam surpreendem-se quando encontram um espaço construído com tanto cuidado, aparato artístico e financeiro”, afirma o diretor da Biblioteca Geral, José Augusto Bernardes.

O dirigente vê aquela casa dourada – o interior é composto, em toda a extensão, por estantes forradas a folha de ouro e decoradas com motivos chineses – como “uma celebração da razão, da liberdade, do conhecimento e dos valores” perfilhados pela universidade. E destaca o facto, “muito pouco sublinhado”, de a Joanina ser ainda “uma biblioteca viva”. “Os 55 mil volumes que lá existem, a maioria em latim, podem ser requisitados. Em 2014, cerca de 400 fizeram o percurso entre a Biblioteca Joanina e o edifício principal [são manuseados à vista de um funcionário, na sala dos manuscritos reservados da BGUC]. Ou seja, aquela biblioteca não é um museu, é um espaço vivo: foi concebido como biblioteca e ainda hoje se mantém como tal”, descreve Bernardes.

Morcegos ajudam à conservação

Lá, na Joanina, os turistas que vão mirando em volta, de olhos fixos no dourado das estantes e nas pinturas do teto, são informados disso mesmo. The books have no use, right?, pergunta uma visitante, surpreendendo-se com a resposta da guia. Os ah e oh! tornam-se ainda mais expressivos quando ouvem a história da colónia de morcegos que habita na biblioteca e “protege” os livros, ao alimentar-se de insetos bibliófilos.

Numa sala escondida de um dos pisos inferiores, fica uma das oficinas de trabalho de Elsa Girão (de frente), a técnica de restauro da Biblioteca Fotografia © Fernando Fontes / Global Imagens

Numa sala escondida de um dos pisos inferiores, fica uma das oficinas de trabalho de Elsa Girão (de frente), a técnica de restauro da Biblioteca Fotografia © Fernando Fontes / Global Imagens

“Infelizmente, não se conhece bem aquela colónia, mas teoricamente eles exercem uma função importante. E são preservados quase desde o início da Biblioteca Joanina. Há registos da compra de peles, em finais do século XVIII, para proteger as mesas dos dejetos dos morcegos”, conta António Eugénio Maia do Amaral, diretor adjunto da BGUC. Os pequenos mamíferos voadores acabam por ser uma das principais armas de combate às ameaças à saúde dos livros.

Os outros perigos para as obras centenárias são fáceis de identificar: “eventuais incêndios, inundações ou a alteração das condições de humidade e temperatura, potenciada pela constante abertura da porta, para entrada de turistas”, elenca Maia do Amaral. O manuseio é um risco maior para os livros recentes (que tem uma utilização muito mais intensiva). E possibilidade de aparecerem pragas é combatida “com limpeza, limpeza e mais limpeza”. “Há em permanência duas pessoas destinadas à limpeza da Biblioteca Joanina. Como são três pisos, começam numa ponta e recomeçam quando terminam de limpar os livros”, completa.

Uma delas é Isabel Cardoso, de 60 anos e funcionária da Universidade de Coimbra há 27. É ela quem faz aquilo que chama “um trabalho normal”: deixar as estantes a brilhar e cobrir de peles todos as mesas, ao final, e destapá-las na manhã seguinte, limpando os dejetos dos morcegos. “Tenho tanto amor a isto como à minha casa. Esta biblioteca merece ser estimada”, diz.

É claro que todos estes cuidados não impedem que os livros se deteriorem. “Possuir um livro ou manuscrito antigo implica gastos”, ressalva José Augusto Bernardes. “Nós não temos condições em Coimbra para efetuar trabalhos mais delicados e, sempre que necessário, temos de recorrer à secção de restauro da Biblioteca Nacional ou do Arquivo da Torre do Tombo. Ao longo do ano, enviamos para Lisboa 10 ou 15 obras e não conseguimos passar disso, quando devíamos enviar dez vezes mais. E mesmo essas que conseguimos enviar são resultado de apoios mecenáticos”, explica o dirigente.

500 euros salvam vida de um livro

Os apoios, através do projeto SOS Livro Antigo, tanto podem chegar de empresas e fundações como de simples anónimos, que gostam de ajudar a biblioteca. A despesa depende dos estragos na obra. “Casos mais problemáticos chegam aos 5000 euros, enquanto em casos correntes podem bastar 500 para evitar que o livro morra”, concretiza o diretor da BGUC.

José Augusto Bernardes, diretor da Biblioteca Geral da UC, pede mais apoios para a conservação e restauro: “Não faltam livros para recuperar” Fotografia © Fernando Fontes / Global Imagens

José Augusto Bernardes, diretor da Biblioteca Geral da UC, pede mais apoios para a conservação e restauro: “Não faltam livros para recuperar” Fotografia © Fernando Fontes / Global Imagens

O lamento de José Augusto Bernardes é longo. “Não faltam livros para recuperar. Entre os dois milhões de obras da Biblioteca Geral, é possível encontrar uma centena em estado moribundo. E não falo apenas das Bíblias Atlânticas do século XII, da Bíblia Hebraica ou de primeiras edições de Os Lusíadas… às vezes são livros novos, de 2013 ou 2014: se forem muito procurados, e consultados 100 ou 200 vezes, precisam de restauro imediato. Por tudo isso, gostaria muito de restabelecer na BGUC uma secção de restauro de livros recentes e antigos, que servisse toda a Universidade. Mas não temos meios.” Assim, o dirigente diz que “não basta aplaudir a biblioteca por, ao longo dos séculos, ter mantido documentos preciosos; também é preciso ajudar para isso continuar a acontecer”.

Também para proteger os livros, Maia do Amaral tem uma proposta para o futuro: “A reavaliação do circuito turístico da Universidade de Coimbra e a procura de alternativas que não sejam tão intrusivas no ambiente da Biblioteca Joanina.” E Bernardes sublinha a necessidade que o digital não substitua o papel: “Temos a 1.ª edição de Os Lusíadas, que saiu do prelo de António Gonçalves em 1562 e, se quiser vê-la, eu vou buscá-la em cinco minutos. Esse exemplar também está digitalizado. Mas eu não tenho a certeza de que esse suporte esteja operacional daqui a 30 anos. Já do livro impresso sei que posso mantê-lo em condições para que continue disponível daqui a 500 anos.”

O exemplo não surge por acaso. Os Lusíadas são mesmo uma obra especial para o diretor da BGUC: “É um livro diferente, que também não deixou de nos interpelar, de nos desassossegar. Um livro que termina com um apelo ao futuro está destinado a não morrer.” E a Biblioteca Joanina, e pessoas como Elsa Girão, cá estarão para o proteger, junto com as outras obras: “É muito gratificante quando chegamos ao fim e permitimos que um livro que já estava em fim de vida volte a ser utilizado novamente.”

Espólio de referência e muito património mundial

Quem passa pela imponente Porta Férrea que dá acesso ao Paço das Escolas já sabe ao que vai. E, se não souber, os archeiros (antigos guardas da universidade, que agora cumprem funções simbólicas e esclarecem as dúvidas dos turistas) podem ajudar. À distância de curtos passos estão boa parte dos edifícios da Universidade de Coimbra que em 2013 foram considerados Património Mundial pela UNESCO. A Biblioteca Joanina é apenas um deles.

No Pátio das Escolas revelam-se os principais pontos de interesse turístico da Universidade de Coimbra. O Património Mundial (que fez aumentar muito o fluxo de turistas) estende-se pela Alta Universitária e por sete antigos colégios na Rua da Sofia (na baixa da cidade). Mas ali é o centro de tudo: da solene Sala dos Capelos, palco das principais cerimónias académicas, à emblemática Torre da Universidade, todos os espaços mais relevantes estão disponíveis para ser visitados. No verão, há visitas até às 19.30 (a Torre fecha às 18.00 e a Biblioteca Joanina às 17.00). E quem entrar na casa dourada, ficará ainda a conhecer, num dos pisos inferior, a antiga Prisão Académica (cárcere de estudantes universitários, que ali funcionou entre 1773 e 1834).

De resto, o que poucos turistas saberão é que, no fundo, a Joanina é um (belo) anexo da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra. Esta instituição – cujo edifício principal (construído em frente à Faculdade de Letras, a cerca de 100 metros da Joanina) ficou concluído em 1962 – é a maior e a mais rica biblioteca universitária do mundo lusófono, com um espólio de cerca de dois milhões de livros (e um rico acervo de mapas, medalhas ou publicações periódicas, como jornais e revistas). E, como diziam os seus estatutos do século XVI, está “aberta a lentes [professores], estudantes e quaisquer pessoas outras”.

 

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