Por André Miranda de O Globo

Entre o Cosme Velho e o Engenho Novo, 61 cartas enviadas de um imortal para outro há mais de um século foram preservadas e agora compõem o acervo da Academia Brasileira de Letras (ABL). Delas, 11 eram completamente desconhecidas dos pesquisadores da instituição. Além das correspondências, centenas de itens dispostos em 14 caixas estão sendo higienizados e catalogados pelos funcionários da ABL, entre esses uma foto inédita e em bom estado de seu primeiro presidente (e o remetente das cartas), Machado de Assis.

O material foi entregue à ABL em agosto pelos herdeiros do jornalista, professor e crítico literário José Veríssimo, amigo de Machado. Nascido em 1857, no município de Óbidos, no Pará, Veríssimo se mudou para o Rio em 1891 para ser professor na antiga Escola Normal (hoje o Instituto de Educação) e no Ginásio Nacional (que se transformaria no Colégio Pedro II).

Morador do Engenho Novo, ele foi o primeiro ocupante da cadeira 18 da Academia, posição hoje do imortal Arnaldo Niskier. Antes mesmo da fundação da ABL, o intelectual teve um papel essencial para a formação da academia: ele era o diretor da ‘‘Revista Brasileira’’, uma publicação que reunia artigos de intelectuais da época. Foi na redação da ‘‘Revista Brasileira’’ que aconteceram as primeiras reuniões para se definir o que seria a ABL, já com a presença de Machado, famoso morador do Cosme Velho.

Os grandes intelectuais da época eram Machado, Joaquim Nabuco e o José Veríssimo. Entre os intelectuais republicanos, ele era o maior — conta o historiador e imortal José Murilo de Carvalho. — Por isso, esse acervo que recebemos da família é importantíssimo. Já tínhamos na ABL algum material original do José Veríssimo, mas o que chegou agora não tínhamos conhecimento.

Uma das 11 cartas de Machado de Assis para José Veríssimo - Marcelo Carnaval / Agência O Globo

Uma das 11 cartas de Machado de Assis para José Veríssimo – Marcelo Carnaval / Agência O Globo

O acervo de Veríssimo estava guardado num gaveteiro antigo de um apartamento de Copacabana, no Rio. Depois de sua morte, em 1916, o material ficou com um dos filhos do acadêmico, o marechal Ignácio José Veríssimo. Em seguida, o acervo foi entregue para o sociólogo e advogado Jorge Veríssimo, filho do marechal e portanto neto do fundador da ABL.

Jorge morreu em 2013, aos 91 anos. Foi decisão de seus dois filhos e de sua viúva, Helena Araújo Veríssimo, procurar a ABL para mostrar o material.

O Jorge sempre teve muito ciúme desse acervo e nunca quis fazer a doação. Mas me afligia muito ver a quantidade de documentos pressionados naquele gaveteiro — conta Helena.

O primeiro contato entre a família e a Academia ocorreu no fim de julho, pouco tempo depois da publicação do quinto e último volume da coleção “Correspondência de Machado de Assis”, editada pela própria ABL com todas as cartas até então conhecidas de Machado. Em 18 de agosto, técnicos da ABL foram até o apartamento de Helena Veríssimo e coletaram o material.

Outra das cartas de Machado para Veríssimo - Marcelo Carnaval / Agência O Globo

Outra das cartas de Machado para Veríssimo – Marcelo Carnaval / Agência O Globo

Estamos começando agora o trabalho com esse acervo. O tempo para termos tudo catalogado e também para fazermos o cruzamento completo com outras correspondências que já temos em nosso arquivo é de até três anos. São itens valiosos, sobre os quais já estamos trabalhando — diz Maria Oliveira, chefe do arquivo da ABL.

Os pesquisadores da Academia destacam, além das correspondências e da foto de Machado, um rico material de recortes de jornais e de cartas enviadas pelo historiador Oliveira Lima, outro dos fundadores da instituição.

São mais de 150 correspondências do Oliveira Lima. E isso é fabuloso, porque o acervo do Oliveira Lima não está no Brasil. Como ele tinha brigado com o Barão de Rio Branco, ele ordenou em seu testamento que todo seu acervo ficasse em Washington, onde era diplomata. Hoje, para pesquisarmos documentos originais de Oliveira Lima, precisamos ir até a Universidade Católica de Washington — afirma José Murilo de Carvalho.

MENUS DE JANTARES DE ESCRITORES

Reprodução de menus de almoço - Marcelo Carnaval / Agência O Globo

Reprodução de menus de almoço – Marcelo Carnaval / Agência O Globo

No meio do acervo de José Veríssimo, mais uma preciosidade foi encontrada pela ABL: um álbum com os menus de jantares oferecidos entre o fim do século XIX e o início do século XX, no Rio. Na época, esses menus eram preparados especialmente para cada ocasião mais solene e tinha ilustrações de artistas. Olavo Bilac, outro fundador da ABL, também guardava esses menus e teve o material transformado no livro ‘‘Para uma história da belle époque –  A coleção de cardápios de Olavo Bilac” (editora Imprensa Oficial de SP), de Lúcia Garcia.

Também nos arquivos preservados pela família de Veríssimo, há outras fotos: do próprio imortal, de Machado, de Oliveira Lima, de Bilac, entre outros.

O historiador José Murilo de Carvalho acredita que esse material não foi entregue à ABL na época da morte de José Veríssimo, em 2 de fevereiro de 1916, porque o acadêmico paraense havia rompido com a academia e deixado de frequentar a instituição. O motivo foi a eleição, em 1912, do político Lauro Müller, então ministro das Relações Exteriores. Veríssimo era contrário à entrada de intelectuais que não tivessem relação direta com a literatura na ABL.

Uma de nossas tarefas é identificar a razão de esse acervo nunca ter vindo para a Academia — diz José Murilo.

Comentários

Comentários