A década de 1930 é conhecida nos espaços literários como o momento do romance regional, especificamente o romance ambientado no sertão nordestino. Após as reivindicações dos modernistas de 22, e de ser instaurada uma literatura com uma linguagem mais abrasileirada, é no romance de 30 que o país passa a ser retratado com mais realismo. Os problemas sociais, o flagelo da seca, os mandos e desmandos de uma terra de leis inexistentes são temas que orientam escritores como Rachel de Queiroz, Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Jorge Amado (no Nordeste) e Érico Veríssimo (no Sul). Embora o sertão, as matas e o litoral do nordeste tenham sido já retratados antes dessa época (O sertanejo, de José de Alencar; Os sertões, de Euclides da Cunha, O Cabeleira, de Franklin Távora; A Bagaceira, de José Américo de Souza) é com o regionalismo de 30 que a literatura começa a refletir o país de modo mais crítico e polêmico.

Os romances tinham em comum, além da crítica de forte apelo social, a linguagem limpa de ornamentos, destituída de metáforas, seca como o problema que ela encerrava. Mas essa nova linguagem, nascida de um despojamento, enche os olhos dos leitores brasileiros, ávidos por conhecer o Brasil desconhecido porque esquecido. Graciliano foi mestre no uso dessa linguagem, mas também o foram Rachel de Queiroz (O Quinze) e José Lins do Rego (Fogo Morto). Passada essa década de “redescoberta do país esquecido”, surgiram outros escritores cuja linguagem foi reinaugurada, como Clarice Lispector e Guimarães Rosa. E o nordeste deixou de ser o centro da literatura. Estávamos cansados de ver a miséria retratada na ficção. Queríamos respirar outros ares. Novos escritores nordestinos não despontaram. O eixo de ficção sul-sudeste se intensificou. Veio a fase do conto, houve uma certa estagnação da literatura na década de oitenta.

O nordeste dos anos 2000: dá para falar em regionalismo?

Mas eis que o final do século XX novamente viu surgir vozes nordestinas, apresentando uma ambiência totalmente diferente da geração de 30, em projetos igualmente distintos entre si. Não sei se coloco esses novos escritores dentro do bojo da geração 2000 (muitos escrevem desde a década de 90, embora tenham sido reconhecidos apenas a partir dos 00), mas o fato é que uma nova configuração de ficção sobre o nordeste é clara.

Para citar apenas dois representantes dessa nova geração, indico Marcelino Freire, contista pernambucano e agitador cultural em São Paulo, cuja ficção é quase minimalista, uma linguagem oralizada, performatizada e de personagens mergulhados numa crueza (Rasif: mar que arrebenta, 2008, é um exemplo), e o romancista premiado Ronaldo Brito (do romance Galileia, que venceu alguns prêmios importantes no país recentemente). Ao contrário do nordeste mítico, primitivo, seco e da política do manda-quem-pode-obedece-quem-tem-juízo, a temática agora parece voltar-se mais para as ações humanas individuais, embora não se deixe de apresentar a paisagem. São as questões internas que conduzem os enredos e orientam a trama hibridizada. O personagem segue discorrendo sobre sua existência num mundo cruel, quase sem intermediação de narrador. O personagem livre das descrições psicológicas se diz, se mostra e se impõe.

Uma escrita de peso em O último circo

Nessa resenha, gostaria de apresentar uma escritora nova, recém-publicada pela Editora Multifoco (Rio de Janeiro), que pode muito bem ser uma representante dessa nova ficção nordestina. Não que o tema regionalismo tenha despontado de novo. Não é isso. São escritores de uma região escrevendo sobre o humano, sobre a profundidade do humano, sem limites de fronteiras, ainda que o ambiente seja o sertão ou a faixa litorânea. A escritora paraibana Maria Bessa, em seu romance O último circo, apresenta uma visão muito particular de uma família “tipicamente nordestina”, como a sinopse indica. Mas esse típico está longe de ser uma caricatura de personagens-tipos. A nordestinice está latente nos modos, na linguagem. E só. De modo que essa família pode estar em qualquer parte do país.

Em pouco mais de 250 páginas, o romance vai alinhavando pequenas histórias, a modo de uma colcha de retalhos. Pelos olhos do personagem-narrador, o adolescente Euves (com “u” mesmo) vemos a trajetória de uma família relativamente abastada, na cidade de Mataraca (litoral paraibano), até o seu declínio, por volta dos anos50. Afamília de Euves (seu pai também é Euves com “u”, erro do tabelião) descende dos abastados proprietários de engenhos de açúcar, mas o que importa saber no romance é menos o relato de sua decadência e mais os muitos casos narrados com doses de bom humor, numa linguagem apurada e lírica, bem construída, repleta de cacoetes e de recursos regionalistas que dão ao texto mais força de expressão. Esqueci de mencionar que o cachorro da família se chama Antonio Silvino e adora peidar. E o que isso tem a ver com a trama? E o que o Euves filho e o Euves pai têm em comum, além do lapso do registro do nome? E onde entra na história (ou histórias) o circo, com seu universo mágico? Será uma metáfora? Seria a família o próprio ambiente circense, em que cada personagem cumpre muito bem seu papel de fazer rir?

“Francamente, papai nunca foi uma pessoa totalmente engajada com o mundo real, e mamãe sabia disso. E, de acordo com o calendário lunar, isso se agravava de tempos em tempos. Sabe, Menino, seu pai é como um aparelho fora da tomada, totalmente desligado. Mamãe disse, vivia dizendo…” Logo no início, percebe-se a importância desse pai na vida do adolescente. Os títulos dos capítulos já indicam que o romance é quase que uma rapsódia, costura de contos sobre a família. Vejamos alguns: “Quem foi que disse que Deus não dorme?”; “Vovô foi alvejado na moleira por uma cigarra mijona”; “Uma descendência de dom Fruela: papai tinha sangue real”; “cogumelos de inverno ou orelha de pau”; “um debutante, um veterano, um bêbado: uma história sexual”. Quem não sente vontade de mergulhar na leitura vendo esses títulos tão inspirados?

A advertência ao leitor iniciante de Maria Bessa é: “não se preocupe com o enredo, com começos, meios e fins”. Finalmentes é o que não há nessa narrativa. O que conta são os contos (causos, rapsódias), a linguagem, os capítulos quase soltos, que bem poderiam ser contos isolados, a polifonia dos personagens variados e engraçadíssimos, que fazem de Maria Bessa uma promessa que já é presente. Ela só precisa ser lida, vista, divulgada.

Por fim, é importante dizer que a Editora Multifoco, situada no Rio de Janeiro, vem se destacando no mercado editorial por dar chance para autores desconhecidos. Não estou me referindo àquelas editoras de fachada que cobram do autor pela edição/impressão. A multifoco se responsabiliza por tudo, desde que os editores vejam no texto qualidades. Depois da publicação, a própria editora se encarrega de vender a obra (www.editoramultifoco.com.br) sem prejuízo para o autor.

E para não dizer que o título é metáfora, deixo o leitor com um trecho do último capítulo: “Naquele dia, chovia muito em Mataraca. Para falar com franqueza, chovia demais. As águas chegaram a invadir as ruas, cobrindo o meio-fio. E o céu, Deus do céu, o céu não estava azul. Mas havia o circo. E a cidade tornava-se grande porque receberia um circo; para ser franco, tornava-se imensa, porque cabia um circo. Um circo inteiro dentro dela”.

O último circo é uma leitura que dá a dimensão de imensidade a um pequeno lugarejo, a uma pequena família, num tempo tão pequeno, na vastidão da memória da autora.

Livro: O último circo

Autor: Maria Bessa

Editora Multifoco, 2011

Gênero: Romance

Páginas: 276

preço: R$ 50.00

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