Em seu contexto histórico, a Biblioteconomia possui uma herança social e política desde o seu nascimento com o intuito de fundamentar uma área do conhecimento humanístico-social no processo de atuação das bibliotecas. Os mentores da Documentação, Paul Otlet e La Fontaine, ativistas e pacifistas por excelência, acreditavam que a disseminação e o acesso ao conhecimento produzido por todas as nações propiciariam a paz mundial, no sentido do conhecimento das diferenças de classes.

Nos anos de 1960, tem início nos EUA, dentro da Biblioteconomia, um movimento preocupado com o compromisso e a responsabilidade social da profissão. As discussões se relacionavam com a neutralidade profissional no desenvolvimento de coleções diante da censura e dos grandes grupos editoriais, assim como também a neutralidade dos sistemas de classificação com as suas problemáticas nos temas como: homossexualidade, religião, guerra, paz etc.

A nível internacional, mais recentemente, surgiram diversos grupos sensibilizados com temas sociais, com destaque para o Progressive Librarian Guild (PLG), associação americana nascida em 1990, que tem por objetivo desvendar os interesses políticos e econômicos encontrados em cada um dos processos e práticas do trabalho dos bibliotecários, o que lhes proporcionou muitos inimigos dentro e fora dos Estados Unidos. No México o Círculo de Estudos sobre Biblioteconomia Política e Social (CEBI) produz diversas discussões sobre censura e neutralidade, assim como o Grupo de Estudos Sociais em Biblioteconomia e Documentação (GESBI) na Argentina. Já na Espanha há uma forte campanha desde 2004 chamada “Não ao empréstimo pago nas bibliotecas” que resulta de um embate judicial na Corte Europeia a respeito da mercantilização das bibliotecas e da informação.

Biblioteconomia, uma ciência social aplicada

Academicamente falando, a Biblioteconomia está inserida nas áreas de conhecimento das humanidades e das ciências sociais aplicadas, ou seja, possui laços ligados ao social o que deságua no contexto político, visto que as relações sociais são designadas por processos e atividades políticas, e a política é o resultado da atividade dos próprios homens vivendo em sociedade. Portanto, não só o nascimento, mas também o desenvolvimento da Biblioteconomia está ligado somente à sobrevivência dos suportes e o fazer dos processos, como definidos na maioria dos dicionários da área, e também na satisfação e desenvolvimento das necessidades sociais da sociedade.

Sabemos que as bibliotecas são frutos de instrumentos de políticas públicas derivadas de processos políticos e podemos afirmar isto através dos processos rotineiros que ocorrem nas bibliotecas nas quais nomeamos instintivamente como políticas de desenvolvimento de coleções, políticas de empréstimo, políticas de organização e disponibilização da informação, políticas de indexação etc.

Assim, usamos o artifício da palavra “política” para organizarmos nossas bibliotecas, mas, por muitas vezes, em virtude do principal foco de atenção da área estar relacionado aos processos técnicos e tecnológicos do fazer biblioteconômico, deixa-se de lado a herança e o legado social que deu origem ao desenvolvimento da área e o que esta palavra realmente significa no espaço em que atuamos.

Em 2005, em seu manifesto sobre “transparência, bom governo e ausência de corrupção”, a IFLA nos lembra que a biblioteca é uma instituição necessária ao exercício da democracia e que deve ajudar na defesa dos direitos civis, na promoção da cidadania e no combate à corrupção, metas essas impossíveis fora do âmbito político tanto para as bibliotecas quanto para os seus profissionais.

As bibliotecas públicas e suas co-irmãs devem ter por objetivo uma política de ação social e educacional como uma atividade emancipadora, um instrumento essencial para que os indivíduos se reconheçam como cidadãos, ou seja, processos políticos do qual o bibliotecário nem sempre tem consciência.

A Biblioteconomia não é simplesmente um conjunto de técnicas desvinculadas da sociedade em que ocorrem e, caso seja realmente neutra, como alguns afirmam, a ideia de neutralidade já é uma das premissas do campo neoliberal, que marca os parâmetros ideológicos que movem a sociedade hoje.

A neutralidade dos bibliotecários

A premissa de que o bibliotecário não deve ser em sua prática profissional, nem de esquerda, nem de direita, ou de centro, devendo ser totalmente apolítico e neutro, trata-se também de uma maneira de utilizar os mesmos e as instituições como armas de controle. A neutralidade, em sua essência, supõe a aceitação acrítica da ideologia dominante e isso já é uma postura política e, diante disto, propõe-se que qualquer profissional da informação poderia aspirar ser mais independente, reflexivo, crítico e com um discurso que se refere ao bem coletivo e comum a todos.

Hoje talvez falte ao bibliotecário a consciência de que a biblioteca pode atuar como instrumento de mudança social, pois a defesa da liberdade intelectual, a garantia do pluralismo das coleções e a defesa do livre acesso à informação são atividades políticas exercidas diretamente ou indiretamente pelos profissionais da informação. Segundo Almeida Júnior em sua obra Biblioteca pública “o bibliotecário precisa agir de uma maneira mais revolucionária, dado que este tem sido considerado como sendo passivo, guardião do passado, ocioso, inútil, sem função social, funcionário público, dentre outras atribuições”.

Portanto, a Biblioteconomia pode se configurar como uma “instituição política” e compensatória das desigualdades crescentes entre ricos e pobres em informação, amenizando assim as lutas de classes oriundas do sistema político-ideológico atual que se transpõem para dentro das bibliotecas.

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